Ser humano soberano, perigoso e maquiavélico

A identidade vestiu o homem de tal forma que ele já não se reconhece como animal. Logo, o outro passou a ser, a seus olhos, um estranho e isso legitimou a vontade do homem querer reinar sobre o diferente e se sentir soberano.
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É possível dizer que o que separa o ser humano do ser animal é uma película tênue tecida na trama cultural. Mas o que é ser um animal e ser humano na sociedade? Como fala Jacques Derrida (1930 - 2004) em seu livro o Animal que logo sou¹, em síntese, humano é uma identidade que subordina aquele que aos olhos dele se torna, de imediato, um animal. Humano é uma primeira identidade que afasta o homem de sua natureza animal. O faz esquecer que é um ente da natureza comum. O humano pode ser pensado como capital ao mesmo tempo em que é alma capitalizada e, talvez, capturada pelo desejo de poder. Nessa relação que institui quem é humano e quem é animal sem se dar conta que o humano é um animal tão semelhante ao animal que o olha, o humano se de ne soberano. Como dizia Jacques Derrida2 (1930-2004) nessa cena primitiva de um teatro insensato, aquele que é chamado de animal se torna completamente o outro ao meu olhar.
¹2011a 

²Ibid.

Com Derrida é possível entender que a identidade do "humano" é um termo que, na maioria das vezes e em inúmeras situações, faz o homem se colocar como superior a outras formas de vida. Antes de qualquer consideração biológica sobre o ser humano, é possível entender o ser humano como uma identidade que emana poder e vê em qualquer dessemelhança uma vida inumana.


Eduardo de Campos Garcia é doutorando e mestre em Educação, Arte e História da Cultura pelo Mackenzie. Especialista em Libras pela FIJ. Especialista em Mes pela PUC-SP. Graduado em Pedagodia pela UNIG e em Letras pela UBC/MC-SP. Atualmente é professor pesquisador do departamento de Educação da UNINOVE



Ser humano pode ser uma verdade biopolítica que institui o outro como um inumano dentro das relações sociais. O ser humano, enquanto ser, possivelmente, foi aquele que racionalizou seu modo de viver e por esse motivo passou a existir historicamente. Ele registra suas memórias e manipula seus registros. No entanto, é com Jacques Derrida em seu livroGramatologia³ que se pode interpretar que tudo não deve ser pensado de uma só maneira. Partindo dessa interpretação, as verdades poderiam ser questionas criticamente sempre. Descer por goela abaixo como alimento que sustenta e basta, em muitos aspectos, é viver no preconceito sem se dar conta. Segundo Derrida, as escrituras - ou seja, as simbologias criadas discursivamente - são abertas pela exposição de um projeto classi catório e sistemático. Logo, nossa identidade "humana" pode ser considerada como dispositivo de um sistema fechado e poderoso.
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DIÓGENES de Sínope é o mais folclórico dos filósofos. Mendigo, fez da pobreza uma virtude. Dizse que vivia num barril e carregava uma lamparina, procurando um homem honesto. Pela forma como vivia, era conhecido comokinos, o cão. Apesar de atacar os valores gregos, suas ideias foram disseminadas pelo mundo


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O filósofo Michel Foucault abordou a questão do discurso em seu livro As palavras e as coisas. Na obra, o autor ressalta que o mundo é um entrelaçamento de marcas e palavras, o que significa que o nosso "mundo de verdades" é simbólico, porque pensamos simbolicamente
Para entender melhor sobre sistema identitário pode-se recorrer a Kathryn Woodward em seu texto Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual4. Para ela, a identidade envolve reinvindicações essencialistas sobre quem pertence e quem não pertence a um determinado grupo, nas quais a identidade é vista como xa e imutável. Por meio dos escritos de Woodward é possível concluir que o humano, como identidade do ser, foi coagulado5.
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Nesse sistema, a identidade coagulada do humano decide no lugar do outro, que considera inumano, quem pode falar de si. O humano é aquele que institui o discurso como meio de persuasão. Para Woodward, os discursos e os sistemas de representação - identidades - constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar.
Michel Foucault (1926-1984) em A ordem do discurso6 já dizia que o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. Nessa ordem, o discurso se materializa e com ele todo um sistema que prescreve e de ne entra em cena.
5O termo coagulado usado aqui tem como referência o texto de Jürgen Habermas O futuro da natureza humana (2010).
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A relação que define quem é humano e quem é animal não leva em consideração que o humano é um animal tão semelhante ao animal que o olha, o humano se define soberano, para corroborar seu desejo de poder. Como diz Derrida, "é uma cena primitiva de um teatro insensato"
Na medida em que o ser se autoidenti ca como humano e socializa essa certeza, dissemina seu discurso de convencimento para que se massi que. Ser humano não seria um problema se, de imediato, seu signi cado não fosse a materialidade pelo discurso de que os humanos são os únicos dignos de poder.
Para Michel Foucault, em As palavras e as coisas7, por meio do discurso há um desenrolar dos signos verbais pelos quais permanece a representação simbólica, apagando a verdade primeira. É possível entender que Foucault sinaliza para o poder que o discurso tem de anular o estado bruto das coisas. O discurso faz prevalecer o ato simbólico sobre o objeto. Foucault alerta que o mundo é um entrelaçamento de marcas e palavras. Isso signi ca que o nosso "mundo de verdades" é simbólico porque pensamos simbolicamente. O mundo e todos os valores que o compõem como verdadeiro, inclusive a identidade humana, na medida em que nossos olhos o contemplam, estará cheio de simbologia.
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Dentro da simbologia que nos cabe, somos para o outro o discurso no qual nos encaixamos. Seremos avaliados segundo o discurso que nos é oferecido como verdadeiro. Portanto, ser humano é ser um animal discursivo que materializa seu poder e hierarquiza pela materialidade. Coagula sua verdade.

A HIERARQUIA PARA EXISTÊNCIA

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Jacques Derrida deixa claro que a identidade do "humano", na maioria das vezes e em inúmeras situações, faz o homem se colocar como superior a outras formas de vida. É possível entender o humano como uma entidade que dissemina poder e vê em qualquer diferença uma vida inumana.


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Para Kathryn Woodward, a identidade de uma pessoa envolve reivindicações relacionadas à doutrina filosófica essencialista
Se o ser humano é um ser discursivo, na medida em que constrói seus discursos de verdade8 para edificar uma hierarquia, possivelmente materializará uma relação antagônica e antitética. Como postulava Michel Foucault em A arqueologia do Saber9, o discurso é aquilo pelo qual se descreve o objeto e o identifica, o nomina e por isso possui o domínio da memória. Jacques Derrida diz que no gesto de seus discursos institui-se o próprio do homem, a relação consigo mesmo de uma humanidade antes de mais nada preocupada com seu próprio e ciumenta em relação a ele. É possível entender que na ordem do domínio social, o objeto simbólico "humano" se autoidentifica como aquele que deve ocupar o topo de uma hierarquia de poder. É egoísta em relação ao outro que observa como menos humano.
8O termo discurso de verdade foi usado por Foucault em seu livro Microfísica do Poder (1979).

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SOMOS PARA O OUTRO O DISCURSO NO QUAL NOS ENCAIXAMOS. SEREMOS AVALIADOS SEGUNDO O DISCURSO QUE NOS É OFERECIDO COMO VERDADEIRO. SER HUMANO É SER UM ANIMAL DISCURSIVO

Homossexuais e preconceito
Os homossexuais, historicamente, são vítimas de preconceito e reações violentas, considerados muitas vezes, na prática, como seres inumanos. Este estigma e a consequente perseguição não oferece trégua. Um dos exemplos mais marcantes de que o tema continua atual é a posição da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, comandada pelo pastor Silas Malafaia, que conta com milhões de seguidores.
Malafaia costuma protagonizar intensas polêmicas ao envolver a questão da intolerância. Em 2006, foi o responsável por uma manifestação em frente ao Congresso Nacional contra a lei que criminalizava a homofobia. O pastor afirmou que os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo são a porta de entrada para a pedofilia. "Deveriam descer o porrete nesses homossexuais", disse.
Recentemente, Malafaia voltou a demonstrar que a posição de sua igreja abusa do direito de discriminar, pregando superioridade sobre os chamados diferentes: "Se tiver pastor homossexual, perde o emprego", afirmou.
Formado em Psicologia, por mais paradoxal que pareça, o pastor assegura que a homossexualidade "é um comportamento", que pode ser mudado. "Ninguém nasce gay. Não existe ordem cromossômica homossexual. Não existe gene homossexual". E faz uma comparação, no mínimo, infeliz: "A mãe de um bandido ama profundamente o filho, mas pergunte se ela concorda com aquilo que ele faz? Eu amo os homossexuais como amo os bandidos e os assassinos", declarou.

INUMANO ANIMAL

Os inumanos em uma possível hierarquia da existência, de imediato, podem ser os animais. Há muito tempo o ser humano declarou sua superioridade em relação à vida animal e se achou no direito de maltratar e fazer uso em pesquisas cosméticas e farmacológicas. Em algumas ações, há maldade gratuita e sem causa.

No Brasil ainda se permite experimentos com espécies animais pelas quais a prática da vivissecção e da eutanásia são permitidas10. No passado, a prática da vivissecção era ensinada na escola. Rãs ou sapos eram abertos, ainda vivos, com muita normalidade, para que alunos analisassem os batimentos cardíacos. Nessas práticas, o outro - aquele declarado como animal - acaba sendo apenas um objeto.
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No Brasil, ainda se permitem experiências com espécies animais, pelas quais as práticas da vivissecção e da eutanásia são aceitas
Não são apenas os animais as vítimas de uma desquali cação por aqueles que se autodeclaram seres humanos superiores. Entre os humanos, existem os que foram vistos e catalogados como espécies inumanas e primitivas, monstruosidades indignas de viver e consideradas dignas de extermínio. Em muitos momentos, os "inumanos" foram objetos da medicina. Cabe lembrar que, até os dias atuais, o corpo dos indigentes é o objeto, permitido por lei, para estudos clínicos. Este fato, obviamente, não é um posicionamento crítico tampouco uma colocação contraria às necessidades dos estudos clínicos. É apenas uma observação. Dado que o corpo do humano de um homem possuidor de uma família, economicamente abastado, trabalhador, não será, na maioria dos casos, dissecado como objeto de estudo. No entanto, o indigente, alguém desaparecido do quadro civilizatório, um "inumano", torna-se objeto para a Ciência. Ser simbolicamente inumano é viver suscetível à verdade do dominador. Mesmo porque o homem indigente, simbolicamente inumano, vive, muitas vezes, como um animal. O indigente-marginalizado come do lixo produzido pelos humanos como os gabirus11, dorme nas ruas feito cão, e toma posse de coisas descartadas pelos humanos capitalizados. Os "inumanos" que habitam as ruas são, em muitos momentos, o re exo do que se denomina primitivo e monstruoso. Sua dor, seus medos e angústias, para muitos "humanos", não incomoda.
10Cf: Lei Federal nº 6638 de 08/05/1979

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OS "INUMANOS" QUE HABITAM AS RUAS SÃO, EM MUITOS MOMENTOS, O REFLEXO DO QUE SE DENOMINA PRIMITIVO. SUAS DORES, MEDOS E ANGÚSTIAS, PARA MUITOS "HUMANOS", NÃO INCOMODA


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UMA DAS principais atrocidades cometidas pelo nazismo foram os experimentos em cobaias humanas. As experiências resultavam em morte, desfiguração ou incapacidade permanente. Eram vítimas os judeus, ciganos, homossexuais, comunistas e pessoas com deficiência mental, considerados vidas sem valor


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Em muitos momentos e através dos tempos, não são apenas os animais que são considerados inumanos, sendo, inclusive, objetos da medicina. A prova é que, até hoje, o corpo dos indigentes é utilizado para inúmeros estudos clínicos, fato permitido pelas legislações de muitos países
PERIGOS DO SIMBOLICAMENTE INUMANO
Como exemplo dessa barbárie que se inicia por meio de uma construção cultural e identitária, é possível relembrar algumas narrativas históricas que transformaram alguns humanos em seres inumanos.

11Cf: Homem Gabiru: catalogação de uma espécie (PORTELLA, 1992).
Na história dos surdos, por exemplo, como relata Sergio Andrés Lulkin em seu texto O discurso moderno na educação dos surdos: práticas de controle do corpo e a expressão cultural amordaçada 12, o surdo era visto como um ser primitivo semelhante ao homem da caverna e por esse motivo digno de ser experimentado pela Ciência. O Dr. Jean Marc Gaspard Itarde, médico do INJS (L'Institut National de Jeunes Sourds) de Paris no século XIX causava feridas, inchaço e cicatrizes em torno das orelhas de muitos surdos. Alguns surdos iam a óbito em nome de uma pseudociência. O direito a experimentação do ser humano ouvinte ao corpo do surdo se deu porque os surdos eram considerados menos humanos que os ouvintes, eram entendidos como seres primitivos. A soberania, que se acreditava existir dos ouvintes sobre os surdos, reduzia a vida dos surdos a uma manipulação cientí ca que, em muitos momentos, anulava a vontade do próprio surdo, eviscerava-lhe o direito de escolha. O anulava.
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Até mesmo no cinema, há inúmeros exemplos de casos representados como monstruosidades, como gêmeas siamesas, anões e amputados. Eram considerados aberrações da natureza e, em consequência, inumanos. E isso aconteceu há não muito tempo, ou seja, no início do século XX
Recentemente, uma produção cinematográfica13 intitulada Venus Noire14, do diretor Abdellatif Kechiche, traz ao grande público a história de uma mulher negra que por sua anatomia passa de "animal de circo" a objeto da Ciência. A mulher hotentote, como era apresentada, era usada como objeto, desprovida de si para viver segundo o olhar do outro que a sujeitava à inumanidade. Jean-Jaques Courtine em seu texto O corpo anormal15 relata que microcephalus, anões, homem-elefante, mulher-camelo, eram formas teratológicas que des lavam nos "entre-sorts" europeus. Tod Browning (1880 - 1962), em seu lme Monstros16, traz à superfície da tela de Cinema uma gama do que a Ciência chamou, no inicio do século XX, de monstruosidades humanas. Gêmeas siamesas, anões, amputados, são algumas formas físicas de atores que representam os "freaks". Para o Cinema, estranhas monstruosidades, para a Ciência, aberrações da natureza, e para a sociedade, inumanos, provavelmente. Para os próprios freaks, eles eram semelhantes.



Hitler, em seu Estado comandado por ideias fascistas, enxergava os judeus e as pessoas com de ciência como seres inumanos, indignos de vida, uma degenerescência da espécie. Bancados pelo instituto Norte-Americano Rockefeller, algumas experimentações com seres humanos eram possíveis quando esses fossem diagnosticados como inumanos. Como conta John Cornwell em Os cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio17, para a Ciência nazista de Hitler, judeus, ciganos, untermenschen, retardados, homossexuais e os que sofriam de doenças incuráveis eram vidas sem valor, essencialmente inumanos. Ainda nessa mesma linha de pensamento é possível relembrar a história sobre os negros no Brasil, a história das mulheres lobotomizadas, os transexuais, os cegos, as crianças Down e todos aqueles que, em determinado período, foram catalogados pela Ciência como inumano. É preciso pensar sobre o valor de se autodeclarar humano e o poder que essa identidade nos atribui quando acreditamos nela. Mesmo porque o homem, esse ser que se autodeclara humano, subordinou a sua racionalidade toda espécie que foi condenada a viver como inválida, indigna e inumana. É perigoso ser humano quando não se vê no espelho que o re ete a semelhança animal que há em cada um. Não foi à toa que São Francisco de Assis, no século XII, se relacionava com tudo que emanava vida e a sustentava, como irmão18. Ainda que não se diga, somos todos derivados de uma mesma substância atômica, combinada e recombinada na formação do que se pode ser.
13Para o lósofo tcheco Vilém Flusser (2009), o Cinema é um aparelho e as imagens transformam conceito em cena

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O HOMEM SUBORDINOU A SUA RACIONALIDADE TODA ESPÉCIE QUE FOI CONDENADA A VIVER COMO INVÁLIDA. É PERIGOSO QUANDO NÃO SE VÊ A SEMELHANÇA ANIMAL QUE HÁ EM CADA UM


O PRÍNCIPE DE MAQUIAVEL SE METAMORFOSEOU EM HUMANO
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Uma produção cinematográfica recente, dirigida por Abdellatif Kechiche e intitulada Venus Noire, conta a história de uma mulher negra, que, graças à sua anatomia, passa de "animal de circo" a objeto da Ciência, mais um exemplo de como o ser humano usa seu poder para revestir o outro de inumanidade


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Na história do Brasil, há um exemplo clássico da linha de pensamento que classifica humanos como inumanos: trata-se da trajetória do negro, escravizado durante várias décadas, e que, até hoje, é perseguido por preconceitos e situações de violência em função de sua etnia
Em síntese, O príncipe, de Nicolau Maquiavel (1469 - 1527), no qual um absolutismo impera em nome do poder que atua como Estado soberano e por esse motivo "os fins justificam os meios", pode ser comparado com a moderna identidade humano. Ser humano, em muitos momentos, justifica qualquer administração da vida inumana a favor do seu governo absoluto e dominador. O príncipe pode representar a materialidade do que se vê como verdade quando se domina o outro e o detém como subordinado eterno. Exerce-se sobre ele o poder de vida e morte a favor de si. Ainda que se acredite que os anteprincípios abordados por Maquiavel em O príncipe estejam distantes do homem comum e próximos da Política do Estado atual, a personagem possivelmente é mais presente nas ações humanas do que se pode imaginar. Mesmo porque à medida em que a identidade humana me torna príncipe do reino humano, a subordinação do inumano passa a ser fruto da realeza que simbolicamente passa a existir. Infelizmente ainda existem muitas formas de vida que, ao serem olhadas pelo príncipe humano, se esvaziam. O príncipe se sente soberano pela hereditariedade do sangue que o consagra. Os "inumanos" nascem, dentro do discurso do príncipe, subjugados à mercê da exclusão. No entanto, cabe pensar: hoje príncipe, amanhã inumano. Vítimas de uma queda financeira que qualifica a marginalidade. Muitas vezes, só se sente a dor do outro quando o outro passa a ser o lado que se habita e de onde se olha. Mudar o olhar, porque todos são essencialmente animais, ainda que se negue, essa é a natureza mais verdadeira. Talvez seja preciso, para não cometer os erros do passado, deixar o príncipe metamorfoseado de lado, para se ficar um humano nu. Como dizia Jacques Derrida, é próprio dos animais estarem nus sem o saber. Eles não estariam nus porque são nus. Nenhum animal jamais imaginou se vestir. Logo, pelo que disse Derrida, é possível imaginar que o homem é um ser animal que se vestiu da identidade humana para se tornar príncipe de si mesmo e com seu poder dominador e discursivo, dominar aquele que considera nu dessa identidade vazia19. Afinal, o inumano, quando assim olhado, teme, sofre, cai, chora, é fruto de um sistema que não o acolhe, é corpo capital, é exemplo de desgraça. Vivencia o dó no olhar, o nojo e desprezo na ação do humano, é excluído pelo olhar e sofre a todo instante uma violência simbólica20. O "inumano" atravessa a rua, pode ser vizinho simbolizado, mas passa despercebido aos olhos do soberano príncipe do Estado, humano. Porque esse se convenceu que é soberano e vestido de si. Seria ético repensar o que significa ser humano. |filo
18 Informações baseadas no lme Irmão sol, irmã lua, de Franco Ze relli (1972).
19O termo identidade vazia foi usado por Michel Foucault em Microfísica do Poder (1979).
20 Termo usado em Filoso a Pop (Tiburi 2011).

Texto Retirado da Revista Filosofia - Ciência & Vida

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