1º Ano – Texto revisional para o simulado / 3º Bimestre


Sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação autêntica é um dom para o futuro.
Albert Camus
NATUREZA E CULTURA

O ser humano graças à capacidade que tem o seu cérebro de acumular experiências, criou a cultura que é o conjunto de conhecimentos e valores de um povo e que são transmitidos de geração a geração. Também pode ser entendida como tudo aquilo que o ser humano produz ao construir sua existência: as práticas, as teorias, as instituições, os valores materiais e materiais. É o conjunto de símbolos elaborados por um povo.
Marilena Chaui diz que “a cultura é o reino da vontade, da finalidade e da liberdade tais como se exprimem na ética, na política, nas artes, nas ciências e na filosofia”, em oposição à natureza, que é o “reino da necessidade”. O que seria então o reino da cultura? É o reino da “finalidade livre”, das “escolhas voluntárias e racionais, dos valores, da distinção entre o bem e mal, verdadeiro e falso, justo e injusto, sagrado e profano, belo e feio”. Portanto, cultura passou a significar, tudo aquilo que é produzido pelo homem. Ou seja, as obras humanas. 
Os outros animais que vivem na natureza não criam cultura, eles agem de acordo com o instinto que é um ato "cego" onde é ignorada a finalidade da própria ação. A sua única preocupação é a de resolver problemas relacionados ao momento presente. A evolução humana é prova de que usamos com racionalidade perfeita nossas culturas e a recriamos a cada dia. Usamos as mãos para evoluir nossos instrumentos tecnológicos; a nossa inteligência para conhecer cada vez mais o universo. Somos capazes de transformar o universo e fazer dele uma morada fantástica. Ás vezes, usamos essa capacidade para transformar nosso cotidiano num inferno. A evolução cultural é a característica mais evidente do ser humano. Mas, a pergunta por que o ser humano evoluiu e evolui? Isso porque ele se percebeu capaz de criar, inventar, transformar e descobrir.
Os estudos da Biologia nos ajudam a compreender que os animais, como as formigas, por exemplo, convivem entre si a partir de regras rígidas e imutáveis da Natureza. Por esta razão, a violência entre animais ocorre somente por duas causas fundamentais: fome e ameaça. Não há animal que violente ao outro ou ao ser humano exceto nos dois casos. Diferentemente dos animais, o ser humano teima em não seguir as normas da natureza, negando-se a obedecê-las. Por isso, ele é o único animal que mata por prazer, violenta e humilha o outro por querer. Essa disposição em não obedecer a regras da natureza é um dos fatores que nos diferenciam dos animais em comum. Apesar de grandes diferenças, também temos grandes semelhanças com os animais da natureza, como o hábito de comer e beber todos os dias, bem como o de dormir e o de acordar, etc.
As relações e formas de cultura entre os seres humanos vêm mudando muito nos últimos tempos, grande parte disso devido ao progresso tecnológico. Quando as pessoas, por causa do progresso tecnológico, intervêm nos costumes, nas tradições, na forma de comunicar, nas relações entre as pessoas, mudando o rosto do mundo, estão se readaptando ao cosmos porque as coisas não param de mudar; estão criando novas culturas e recriando as existentes; demonstram que o progresso tecnológico altera os processos culturais em sua essência.
            Tudo isso, também, interfere em demasia na formação da identidade cultural do homem, porém, vale ressaltar, que o homem não é apenas um produto do meio em que ele vive. Há uma relação recíproca entre indivíduo e sociedade, e isso é determinante para a formação da sua identidade. "A identidade pessoal é construída na trama das relações sociais, que permeiam sua existência cotidiana. Assim, há que se esforçar para que as relações entre os indivíduos se caracterizem por atitudes de respeito mútuo, representadas pela valorização de cada pessoa em sua singularidade, ou seja, nas características que a constituem". 


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2º Ano – Texto revisional para o simulado / 3º Bimestre


“Nós somos aquilo que fazemos repetidamente. Excelência, então, não é um modo de agir, mas um hábito.”

ARISTÓTELES (Ἀριστοτέλης)

Nasceu em Estagira, na península macedônica da Calcídica (por isso é também chamado de o Estagirita). Era filho de Nicômaco, amigo e médico pessoal do rei Amintas 2º, pai de Filipe e avô de Alexandre, o Grande. Aos 16 ou 17 anos, Aristóteles mudou-se para Atenas, então o centro intelectual e artístico da Grécia, e estudou na Academia de Platão até a morte do mestre, no ano 347 a.C. Ele volta para a Macedônia onde, durante três anos, exerceu o cargo de tutor de Alexandre, mais tarde "o Grande".
Em 355 a.C. voltou a Atenas e fundou uma escola próxima ao templo de Apolo Lício, de onde recebeu seu nome: Liceu. O caminho coberto ("peripatos") por onde costumava caminhar enquanto ensinava deu à escola um outro nome: Peripatética, pois ensinava seus alunos caminhando pelos pátios do Liceu. Nela, valorizava-se os estudos das ciências naturais. Tal escola chegou possuir um grande museu de Fauna e Flora e uma grande biblioteca (que preconizou a Biblioteca de Alexandria). O Liceu se tornaria a rival e ao mesmo tempo a verdadeira herdeira da Academia platônica.
O pensamento aristotélico é muito vasto e interessante. Tal filósofo escreveu sobre diversos temas. Alguns pontos de seu pensamento continuam fomentando várias discussões até os dias de hoje. Em seu livro “Ética a Nicômaco”, que ainda é o maior tratado de ética no ocidente, Aristóteles aborda diversas questões relativas à vivência ética.
Para o filósofo estagirita a virtude consiste na justa medida de equilíbrio, ou seja, a virtude ética reside no meio termo, que consiste numa escolha situada entre o excesso e a falta. Em um mundo cheio de ofertas e procuras é essencial manter uma postura equilibrada. Não se trata de se manifestar como indiferente a realidade corriqueira, pelo contrário é estar vivamente presente e atuante, porém com uma boa dose de equilíbrio e senso de responsabilidade. Vivemos tempos em que não nos importamos mais com os meios, com os métodos que teremos de fazer para alcançarmos os nossos objetivos finais tão almejados. Tudo se volta para a nossa "felicidade", nem que tenhamos que magoar muitas pessoas, mas se é para produzir felicidade em minha vida, está tudo bem. A prudência é, portanto, um saber viver. Onde o homem dotado da mesma assume um autocontrole sobre seus desejos e aspirações. A prudência separa de fato o homem consciente (virtuoso) do alienado que se embriaga nos deleites de projeções futuras, sem qualquer resquício de possibilidade de se concretizar a sua aspiração.
Partindo da Ética chegamos ao pensamento político de Aristóteles, para tal filósofo, o homem é um animal político por natureza. Assim sendo, o homem não deve ignorar a coletividade privilegiando interesses particulares. Aristóteles observa que o homem é um ser que necessita de coisas e dos outros, sendo, por isso, um ser carente e imperfeito, buscando a comunidade para alcançar a completude. E a partir disso, ele deduz que o homem é naturalmente político. Além disso, para Aristóteles, quem vive fora da comunidade organizada (cidade ou Pólis) ou é um ser degradado ou um ser sobre-humano (divino).
Aristóteles acredita que "Aquele que é naturalmente um marginal ama a guerra e pode ser comparado a uma peça fora do jogo. Daí a evidência de que o homem é um animal político mais ainda que as abelhas ou que qualquer outro animal gregário. Como dizemos frequentemente, a natureza não faz nada em vão; ora, o homem é o único entre os animais a ter linguagem. (...) Trata-se de uma característica do homem ser ele o único que tem o senso do bom e do mau, do justo e do injusto, bem como de outras noções deste tipo. É a associação dos que têm em comum essas noções que constitui a família e o Estado".

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3º Ano – Texto revisional para o simulado / 3º Bimestre


“Qualquer governo é melhor que a ausência de governo. O despotismo, por pior que seja, é preferível ao mal maior da Anarquia, da violência civil generelizada, e do medo permanente da morte violenta”.

Neste bimestre continuamos a falar sobre a filosofia política do filósofo inglês Thomas Hobbes. Diferente de Aristóteles, Hobbes não acredita que a sociabilidade se configura como natural aos seres humanos. Em sua obra Política, o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C.) afirma ser a pólis (a cidade-estado grega) resultante de uma série de associações naturais, ou seja, como resultado de um processo natural de desenvolvimento, “tão natural como a união de homem e da mulher – com fim de preservar a espécie”. Já para Hobbes, a sociabilidade humana não é natural, mas sim política, na medida em que a associação entre os homens ocorre por acidente, e não por uma disposição necessária da natureza.
Embora ambos os filósofos considerem os homens em relações uns com os outros, a perspectiva hobbesiana avalia a natureza do homem natural de forma absolutamente negativa, na medida em que atribui a sua natureza atributos que os caracterizam em um formato de ferocidade e egoísmo, evidenciando que o que há de mais universal nestes advém, sobretudo, da cobiça natural de cada um proveniente de suas paixões naturais.
A leitura de Hobbes acerca da natureza humana repercute até hoje sendo motivo de muitas discussões. Polêmico, ousado, e talvez, inconsequente, não se pode negar a originalidade do seu pensamento. O que fica patente das suas conclusões é que nas condições em que predomina uma perpétua disposição para a violência generalizada, a conservação da vida torna-se inviável, tendo em vista que a competição pelo poder como estratégia de sobrevivência resulta em uma situação de insegurança absoluta, através do medo constante, por parte de cada homem, da morte violenta imposta pelos demais.
Segundo Hobbes, à propensão natural dos homens a se ferirem uns aos outros se soma o direito de todos a tudo, resultando, pela igualdade natural, em uma guerra perpétua de todos contra todos. Os homens podem todas as coisas e, para tanto, utilizam-se de todos os meios para atingi-las. Conforme esse autor, os homens são maus por natureza (o homem é o lobo do próprio homem), pois possuem um poder de violência ilimitado.
No pensamento hobbesiano, fica claro que o filósofo não defende, como forma de governo, o Estado Republicano. Pelo contrário, assim como Maquiavel, Hobbes é a favor de uma Monarquia Absoluta. Essa seria a forma de governo ideal, pois ela é a que mais parece estar distante do chamado Estado Natural, uma vez que o interesse pessoal do soberano é o mesmo que o interesse público, a autoridade dele é suprema. É, também, a melhor maneira de manutenção do contrato social. Tanto Hobbes como Locke compartilham a ideia de que a finalidade do poder soberano é a de garantir direitos naturais dos indivíduos, como a vida, a liberdade e a propriedade. 

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300 anos de Rousseau


Em 2012 celebra-se o tricentenário do nascimento do filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau, pela primeira vez na história, tem-se reunida uma excepcional coleção de documentos originais que podem reproduzir os diversos aspectos da relação entre o pensamento do filósofo e a revolução francesa. Além dos manuscritos, a exposição conta com um grande acervo de imagens e documentos que perpassam a vida e a obra do cidadão de Genebra.
Quem foi Rousseau?
Assista ao vídeo abaixo e aprenda um pouco mais sobre este grande filósofo moderno.

Em Genebra iniciaram desde 19 de janeiro as festividades do 300° aniversário do nascimento de Jean-Jacques Rousseau. Além disso, inúmeros outros países também planejam homenagens ao filósofo, cujo pensamento iluminou o mundo.

François Jacob, responsável pelas comemorações genebrinas, confirma.

A página do dossiê de preparação do programa do tricentenário de Rousseau em Genebra está adornada por uma imagem que mostra o escritor desafiando as leis da gravidade (como um personagem de Chagall), preso em um anel planetário. Ele é uma grande estrela, em torno da qual orbitam outras pequenas estrelas. A imagem diz o que diz: Rousseau é um ator cósmico e que habita o universo.
 
Difícil de contestar a universalidade de Rousseau. Como prova, a febre mundial que os 300 anos de seu nascimento provoca. Da Suíça ao Brasil, passando também pelos Estados Unidos, inúmeros são os países que participam das celebrações do tricentenário consagrado a um dos mais importantes escritores e filósofos do Iluminismo.
 
Conferências, colóquios, exposições, óperas, concertos, peças de teatro e filmes foram programados em vários locais do mundo. Mas começamos pela Suíça. Por Genebra, é claro, a cidade natal do escritor e que é seguida, juntamente, por Neuchâtel, Yverdon e outras cidadezinhas ao logo da costa do lago de Genebra para festejar, durante todo o ano, um aniversário marcado pelo lema "2012, Rousseau para todos".
 
Sob esse lema foram organizadas uma série de eventos em várias partes da Suíça que começaram 19 de janeiro na ilha de Rousseau, no coração de Genebra. Para o resto diremos "Celebrações do Tricentenário". O resto significa o mundo inteiro.
 
"Chegaram propostas para nós da Europa, das duas Américas, da África. A UNESCO nos ajudou bastante graças à constituição de uma rede de competências que permite dar mais amplitude às celebrações", afirma François Jacob.
 
François Jacob, diretor do Museu Voltaire e da Biblioteca de Rousseau em Genebra, é chefe de projetos e um dos responsáveis pelas comemorações do tricentenário. Para Jean-Jacques, ele queria um "Ano Rousseau" nos mesmos moldes do "Ano Senghor" organizado durante os eventos da Francofonia. Ele admite: "Eu sonhava com isso, mas finalmente não me decepcionei, pois as comemorações do tricentenário assumiram uma amplitude universal". Nas linhas abaixo ele nos fala da universalidade de Rousseau.


Qual é o impacto de Rousseau na Europa dos dias de hoje? 

François Jacob: Eu não usaria o termo "Europa" para identificar o impacto de Rousseau, pois a Europa é uma realidade contemporânea. Ela não corresponde à Europa do Iluminismo como o conhecemos no século XVIII. Na época tínhamos separações entre os países que não tinham nada a ver com as que conhecemos atualmente. A língua internacional era, na época, o francês. A cultura circulava de uma forma diferente. E eu acrescentaria ainda que ela estava reservada a um pequeno círculo de pessoas que viviam na França, Suíça ou na Rússia e liam Rousseau sem serem incomodadas pela fronteira linguística, nem a do pensamento.

Mas finalmente, em que medida Rousseau contribuiu a definir a noção de nacionalidade como se fala no dossiê do Tricentenário?  

F.J: Tudo o que era país no século XVIII se definia pelas famílias reinantes. Catarina II da Rússia era alemã, os Bourbons da Espanha eram de descendência francesa e assim por diante. Então não havia, se você quiser, sentimentos nacionais. O que mudou com Rousseau, é que ela deu a esse sentimento um quadro, levando-se em conta todos os tratados (sociais, educacionais, políticos, etc.) que desenham a imagem de um povo. Entre 1770 e 1771, quando escreve suas "Considerações sobre o governo da Polônia", ele refletia em função dos poloneses e não em função dos suíços.
 
Outro exemplo: quando escreveu seu "Ensaio sobre a origem das línguas", o filósofo disse, em suma, que um ser se modela em relação ao território onde nasceu e em relação à cultura do grupo, dentro do qual evolui. Segundo Rousseau, cada um se alimenta da sua área de origem. Essa concepção ainda bastante nova da identidade foi mais tarde lembrada pela Revolução Francesa e que terminará dando origem à noção de pátria.


Se Rousseau vivesse hoje em dia e assistisse aos atritos entre o ocidente e o oriente, no que chamamos, erroneamente ou não, de "choque de civilizações", o que ele diria? 

F.J: Eu acho que ele teria uma visão ao mesmo tempo bastante negativa e positiva do que está acontecendo hoje em dia. Em primeiro lugar, negativa. O que chamamos de globalização é uma "coisa" terrível, pois aniquila a identidade nacional. Rousseau, a meu ver, não teria gostado, contrariamente a Voltaire que, como grande internacionalista, teria aplaudido essa idéia.
 
Em segundo, positiva. Rousseau apoia o diálogo. Para ele, os povos devem discutir entre eles sem, portanto, homogeneizar suas sensibilidades ao ponto de serem obrigados a viver da mesma maneira em Genebra, Berlim ou Londres.


A Europa, pela qual Rousseau viajou, contribui significadamente às celebrações do Tricentenário. Isso não surpreende. Em revanche, surpreende a participação de países como o Brasil ou os Estados Unidos. De onde vem esse interesse? 

F.J: O Brasil é um bom exemplo, pois é lá que as celebrações do Tricentenário serão as mais significativas. É importante dizer que o colóquio, previsto para ocorrer em setembro em São Paulo, irá reunir cem palestrantes. É enorme! Esse entusiasmo se explica pelo fato de que o pensamento de Rousseau corresponde perfeitamente às preocupações contemporâneas dos brasileiros, visto a sua relação com a língua e à natureza. Não é por acaso que os melhores intérpretes do pensamento de Rousseau são originários do Brasil. O Brasil está à procura de uma identidade política, em um quadro onde sua constituição possa bem "viver".
 
E já que falamos em constituição, eu ressalto que na dos Estados Unidos encontramos muitos elementos emprestados do "Contrato Social" de Rousseau. Isso explica o interesse que os americanos estão tendo pelo Tricentenário. No próximo verão teremos um colóquio e uma exposição em Washington organizados pela Biblioteca do Congresso, em colaboração com a Biblioteca de Genebra, entre outras.


Rousseau "cidadão de Genebra": que ensino ele transmite ao mundo do século XXI? 

F.J: Um ensinamento político em dois níveis. Inicialmente, no plano coletivo. Rousseau diz que é necessário pensar uma maneira de convívio que permita a cada indivíduo de encontrar seu espaço. No plano pessoal, segundo ele, cada um pode ser feliz em casa. A Suíça, onde ele nasceu, oferece nesse ponto de vista um modelo de equilíbrio como ele mesmo teria desejado. Um modelo que não é governado verdadeiramente pelo federalismo (o escritor não utilizava esse termo), mas por um acordo baseado nos princípios simples que favorecem a harmonia.
 
Se essa política de educação fosse escutada pela Europa hoje em dia, ela teria escapado de um monte de problemas. Em todo caso, ela não teria sacrificado o bem-estar das suas populações à ilusão de uma prosperidade econômica.


Ghania Adamo, swissinfo.ch
Adaptação: Alexander Thoele


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Para arquitetar uma democracia...

Desde o início da República, os brasileiros assistem a distância aos processos políticos do país - muitas vezes regados a corrupção. Um grande erro, diria Aristóteles, pois segundo ele só se constrói uma organização social e política justa com participação dos cidadãos. Este é o caminho para uma vida eudaimônica.
"Política, futebol e Religião não se discutem”; “Não gosto de Política”; “É tudo igual, as mesmas caras e nenhuma proposta nova”. Em ano de eleição, o Brasil volta a ouvir de seus eleitores lugares-comuns como os dessas frases, que expressam, por um lado, o cansaço em relação aos escândalos por corrupção, sempre presentes nos noticiários, e, por outro, que denotam a falta de interesse e de cultura política que possibilitem uma ação concreta diante da indignação. Essa falta de informação e de cultura política, em parte resultados de uma Educação cada vez mais sucateada e do descrédito nos políticos – o que leva a uma sensação de “homogeneização corrupta” que envolve as mais variadas siglas partidárias, ou seja, a ideia de que todos são ladrões e vão continuar repetindo os erros de seus antecessores, e que, portanto, nada vai mudar –, a centralização das atividades administrativas e das decisões políticas em palácios fechados e inatingíveis, mesmo que somente ao imaginário da população, fazem desta uma esfera da vida que pouco ou nada diz à sociedade brasileira no dia a dia. As frases supracitadas revelam também o desinteresse do brasileiro, de modo geral, em relação às questões que envolvem a participação política. O cenário político brasileiro e o que cada termo do vocabulário político realmente significa demonstram o enorme disparate entre o real e o ideal, o que é e o que deveria ser, o modo como se faz a administração da “coisa pública” no Brasil.
Rodrigo dos Santos Manzano é graduado em Filosofia pela UNIFAI e professor de filosofia do SESI-SP e da rede pública do Estado de São Paulo
É preciso pensar na crítica ao individualismo para que os homens possam sair do caos no qual nossa época mergulha. Uma das faces desse caos é, em nosso país, a grande descrença e a falta de norte para os brasileiros em relação às instituições políticas, principalmente aos candidatos que apresentam novamente seus mesmos rostos e seus “projetos” que, como por milagre, resolveriam todos os problemas que assolam a nação. Somado a isso, o verdadeiro show do chamado “horário eleitoral gratuito” torna o processo eleitoral um palco de stand up comedy. E como conciliar o individualismo que assola a era atual e a política brasileira?
O individualismo está presente naqueles que se dizem “representantes dos anseios da população”, os próprios políticos. Ao cometerem atos ilícitos com dinheiro público, não estão considerando o mal que fazem àqueles que não terão esses recursos à disposição. Porém, o individualismo não atinge somente candidatos a cargos administrativos, mas também a sociedade brasileira. Alienados e desinteressados, em parte somos todos vítimas de um processo que nos fez ficar à margem da construção de nossa história política. O brasileiro está extremamente imerso nesse cenário de “apolitismo”. Ele o internaliza e acredita ser mais certo ficar distante desse processo.

O BRASILEIRO ESTÁ EXTREMAMENTE IMERSO NESSE CENÁRIO DE “APOLITISMO”. ELE O INTERNALIZA E ACREDITA SER MAIS CERTO FICAR DISTANTE DESSE PROCESSO

Mas afinal, o que é a Política? O que é a democracia? O que é a República? Palavras como essas são muito próximas de nós. Na verdade, a Política deve prestar um serviço à sociedade, e não um desserviço, como vemos muitas vezes na cultura brasileira. Porém, a ausência ou a deturpação da ideia de autoridade, de participação política, de fiscalização tornam o cenário lastimável. O individualismo impede que as pessoas se unam para lutar por condições melhores e para cobrar de seus representantes as ações para as quais foram eleitos. Nesse quadro, o filósofo grego Aristóteles, um dos principais pensadores das instituições políticas e das melhores maneiras de administrar a pólis grega, nos ajuda muito na reflexão que será desenvolvida daqui por diante.

A vida moderna, aliada a uma falta de cultura política, leva os brasileiros a um individualismo que inviabiliza a participação na construção de sua democracia

DEMOCRACIA EM ATENAS
O bicheiro Carlinhos Cacheoira, protagonista de escândalos ligados a parlamentares
Ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu foi acusado de liderar com o mensalão
A estrutura política ocidental é basicamente composta por ideias advindas das civilizações grega e romana, com alguns arremates dados pelos iluministas, os grandes idealizadores da democracia representativa. Porém, a ideia de democracia, bem como a própria palavra, desenvolveu- se na Grécia antiga, com o surgimento da pólis, a Cidade-Estado. As cidades-Estado tinham administração própria e autonomia, sem subordinação a um poder centralizado. Atenas foi a maior representante desse regime político. Um dos principais líderes que guiou Atenas ao sucesso democrático foi o estadista Péricles. Sob seu governo, os atenienses discutiam todos os assuntos na Ágora, a praça pública, e a política era interesse de todos os homens livres que viviam na cidade-Estado. Os assuntos eram discutidos, votados, decididos de maneira direta, sem necessidade de representantes. Os atenienses procuravam fazer com que todos estivessem atentos aos assuntos da administração da cidade-Estado. A democracia – literalmente, governo do povo (demo – povo, cracia – governo) – se fazia de maneira efetiva naquela cidade, principalmente pelo revezamento das atividades públicas por meio do voto direto, realizado na própria ágora.
Em rápida comparação, sabemos que é impossível em uma realidade como a nossa, com uma nação tão grande e com tantos habitantes, contar com um processo político tão direto, como a das antigas Cidades-Estado gregas. Nem mesmo para os processos eleitorais municipais poder- se-ia adotar tal prática, porque até mesmo nos municípios pequenos temos centenas ou milhares de eleitores. Soma-se a isso o fato de que a cidadania ateniense estendia-se aos homens livres somente. Mulheres, crianças e escravos estavam excluídos desse processo.

O INDIVÍDUO DEVE BUSCAR A PARTICIPAÇÃO NA PÓLIS, POIS SÓ PODE TER A CHAMADA EUDAIMONIA SE INTERNALIZAR A PRIORIDADE QUE A PÓLIS DEVE TER EM SUA VIDA

Um dos principais estadistas da Grécia Antiga, Péricles estimulava a discussão dos problemas das Cidades na Ágora
Porém, o que vale notar é a noção que se buscava desenvolver na cultura grega, principalmente nas cidades-Estado que adotavam a democracia: a necessidade de participação política. Tanto é assim que aqueles que não faziam parte da Política, da administração da cidade -Estado, eram malvistos. O tão usual termo pejorativo “idiota” surge na Grécia antiga, idiotés¸ aquele que se preocupa somente com sua própria vida, com os assuntos pessoais, com sua vida particular. A palavra deriva do substantivo idiós, que em português significa “próprio”. Para os gregos, ser um idiotés era fugir da natureza humana, o que significava não utilizar a própria razão.
Desse cenário surge a análise aristotélica. Sua filosofia política defende a democracia desenvolvida em Atenas, pois essa forma de governo é a única, segundo o filósofo, capaz de proporcionar o pleno desenvolvimento da potencialidade social e política dos seres humanos.

A POLÍTICA DE ARISTÓTELES
“Toda Cidade é um tipo de associação, e toda associação é estabelecida tendo em vista algum bem (pois os homens sempre agem visando a algo que consideram ser um bem); por conseguinte, a sociedade política, a mais alta dentre todas as associações, a que abarca todas as outras, tem em vista a maior vantagem possível, o bem mais alto dentre todos.”¹

Vimos que o núcleo da vivência social grega era a cidade-Estado. Tudo se estruturava em função do bom andamento dela. A palavra para designar Cidade-Estado em grego é pólis, da qual deriva o termo que conhecemos por “política”. Assim, Política é a arte de viver em sociedade, de tomar decisões que visem o bem da sociedade, pois, segundo Aristóteles, os homens se associam visando um bem comum. Esse bem comum se articula com a Ética aristotélica, pois a finalidade maior da vida dos seres humanos, de acordo com o filósofo, é a felicidade.

Os cidadãos livres das Cidades-Estados gregas tinham participação efetiva e direta nas decisões. Aqueles que se 
preocupavam apenas com suas vidas eram considerados os idiotés¸de onde surgiu o termo idiota

INELEGÍVEL até 2027, o ex-senador Demóstenes Torres foi acusado de falta de Decoro Parlamentar por usar o cargo para beneficiar os negócios de Carlinhos Cachoeira. Com tantos escândalos de corrupção no país, ele entra para a história como o segundo senador cassado
Aristóteles afirma que Ética e Política caminham juntas. A Ética é a condição necessária para que a Política possa tornar-se realidade, e, ao mesmo tempo, a Política é a Ética visando o bem não apenas de um indivíduo, mas sim de um grupo, ou, para ser mais abrangente, do grupo de pessoas que habitam a mesma pólis. Dessa maneira, Aristóteles dá primazia à pólis, e não ao indivíduo, dentro de seu sistema político. O indivíduo deve buscar, acima de tudo, a participação na administração da pólis, pois esse é um dos objetivos de todo homem. O homem só pode ter a chamada eudaimonia, a felicidade virtuosa, se internalizar a prioridade que a pólis deve ter em sua vida. Essa ideia permite que compreendamos a definição de homem concebida por Aristóteles, que é a de um animal político (zoon polítikos).
“Fica evidente, pois, que a Cidade é uma criação da natureza, e que o homem, por natureza, é um animal político (isto é, destinado a viver em sociedade), e que o homem que, por sua natureza e não por mero acidente, não tivesse sua existência na cidade, seria um ser vil, superior ou inferior ao homem. (...) Assim, por natureza a Cidade é anterior à família e ao indivíduo, uma vez que o todo necessariamente é anterior à parte.”²
Como podemos constatar, Aristóteles observou que o homem só se desenvolve plenamente, só pode ser homem, dentro da cidade. Uma vez que a cidade é anterior a ele, o homem só desenvolve sua natureza se integrar-se a uma sociedade. Para Aristóteles, a integração dos homens é algo natural, inerente a eles. Aquele que não procura viver integrado aos demais abandona sua própria natureza e por isso ou diminui a si mesmo ou sente-se superior aos outros. Nos dois casos, acaba excluindo-se do convívio. Aristóteles teoriza e dá pleno significado à noção de idiotés trabalhada na cultura grega como termo que designava os que se alienavam da Política. Para o estagirita (nascido em Estagira), quem evitava os assuntos da administração pública não podia nem sequer ser chamado de humano.

Para Aristóteles, o homem só desenvolve sua natureza integrando-se na sociedade. Para isso, é fundamental a 
participação efetiva nas decisões políticas.


ARISTÓTELES DIZ QUE O SIMPLES FATO DE OS HOMENS ASSOCIAREM-SE NÃO LHE DÁ NENHUMA VANTAGEM EM RELAÇÃO AOS DEMAIS SERES VIVOS, COMO AS ABELHAS, POR EXEMPLO


“O povo assistiu àquilo bestializado”
Abaixo, temos alguns trechos do artigo publicado no Diário Popular do Rio de Janeiro, no dia 18
de novembro de 1889. Ao lermos o pequeno artigo de Aristides Lobo, escrito em forma de carta,
percebemos como o processo que pôs fim à monarquia no Brasil foi muito mais um artifício visando
os interesses das elites, uma vez que a mesma estava atrapalhando os interesses destas, do que
propriamente um anseio da população. Vemos também que, ao contrário até mesmo da Revolução
Francesa, que foi uma revolução burguesa, mas que contou com a participação do povo, a instauração
do regime republicano no Brasil foi apenas mais um evento para a população, sem importância.
Até mesmo o próprio autor demonstra certa frustração, por ter sido apenas um espectador do evento.
Lobo deduz que houve sim uma mudança de sistema, porém, não que o povo seria determinante nesta,
uma vez que a República brasileira é fruto da elite. Assim, imortalizou-se a frase, que parece resumir a
participação do brasileiro na Política até hoje “O povo assistiu àquilo bestializado”:
“Eu quisera poder dar a esta data a denominação seguinte: 15 de Novembro, primeiro ano de República;
mas não posso infelizmente fazê-lo. O que se fez é um degrau, talvez nem tanto, para o advento
da grande era (...).
Como trabalho de saneamento, a obra é edificante. Por ora, a cor do Governo é puramente militar,
e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. 
O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos 
acreditaram seriamente estar vendo uma parada. Era um fenômeno digno de ver-se. (...) Bom, não 
posso ir além; estou fatigadíssimo, e só lhe posso dizer estas quatro palavras, que já são históricas (...)”.

Segundo Aristóteles, o homem só pode alcalçar a chamada eudaimonia, ou a felicidade virtuosa, por meio da participação da administração da pólis
O desenvolvimento da razão também tem grande importância nesse cenário. Os gregos eram os grandes defensores, no mundo antigo, do uso da razão, principalmente pelo fato de terem criado a Filosofia. A razão era o fator que dava origem à associação. Aristóteles diz que o simples fato de os homens associarem-se não lhe dá nenhuma vantagem em relação aos demais seres vivos, citando as abelhas como exemplo. Porém, os animais não têm o discurso, não produzem voz, ou seja, não emitem sons que possuem sentido. Os homens têm voz, fala e produzem discursos porque desenvolveram a razão. A razão é a condição sine qua non para que as comunidades humanas possam não só se desenvolver, mas terem vínculos efetivos, permanentes, capazes de levar o homem a seu pleno desenvolvimento e a seu fim último, a felicidade.
A noção de felicidade de Aristóteles é bastante interessante e muito oportuna nesta nossa reflexão: o homem só pode ser feliz, virtuoso, se viver em comunidade, se vencer a barreira do individualismo. Vencer o individualismo significa necessariamente ter participação política.
“Ora, o homem que não consegue viver em sociedade, ou que não necessita viver nela porque se basta a si mesmo, não faz parte da Cidade; por conseguinte, deve ser uma besta ou um deus. Assim, há em todos os homens uma tendência natural a uma tal associação; aquele que fundou no princípio foi o maior dos benfeitores. Pois o homem, quando atinge esse grau de perfeição, é o melhor dos animais, mas, quando está separado da lei e da justiça, ele é o pior dentre todos. A injustiça armada é a mais perigosa; o homem está provido por natureza de armas que devem servir à prudência e á virtude, as quais, todavia, ele pode usar para fins opostos. Eis por que o homem sem virtude é a mais cruel e perversa das criaturas, a mais entregue aos prazeres dos sentidos e seus desregramentos. Mas a justiça é o liame entre os homens nas Cidades, pois a administração da justiça, a qual é a determinação do que é justo, é o princípio da ordem na sociedade política.”³
Para Aristóteles, então, a justiça só pode se realizar na sociedade. A Ética aristotélica é baseada na ideia de equilíbrio. Excesso ou falta de algo levam ao vício, e a virtude está no meio-termo. Assim, quando o filósofo afirma que o homem que renega a sociedade é ou uma fera ou um deus, está querendo dizer que ele deixa o estado de equilíbrio, passando aos extremos, e fugindo da natureza para a qual existe, a humanidade. Podemos concluir que a verdadeira justiça encontra-se no bem comum. Daí a necessidade de todos participarem das decisões políticas.


 Aristóteles, em Política, faz uma análise das formas de governo existentes até então. Conclui que, na prática, a democracia é a melhor, apesar da possibilidade de desvio, pois possibilita a participação de todos os cidadãos. A justiça é a virtude da Política e os homens tornam- se justos envolvendo-se com os assuntos da pólis. A sociedade o domestica, não em sentido negativo, mas no de humanizá-lo. Sem a sociedade, o homem torna-se um verdadeiro animal, um ser injusto, refém do egoísmo. Mesmo marcado pelas ideias correntes de sua época, os preconceitos da cultura grega, Aristóteles mostra a importância da sociedade no processo de formação do ser humano, no pleno desenvolvimento deste, e como tudo isso se articula com a Política. Participar da Política era, para o filósofo, a única maneira de garantir a justiça e de assegurar a formação de uma organização social e política justa.

Se a sociedade brasileira já viveu momentos como os da Diretas Já (1984), hoje apenas mostra ânimo para defender seus times de futebol, para o carnaval ou para votar em programas de reality shows
BRASIL, UM PAÍS DE IDIOTAS? 
Após a análise que fizemos, confrontando com a pífia cultura de participação política desenvolvida no Brasil, somos obrigados a responder “sim” à pergunta feita acima. O processo de alienação política ao qual o povo brasileiro foi submetido no desenvolvimento da história da nação obteve êxito. A definição de Política não deixa de ser deturpada no senso comum, pois as pessoas entendem que esse conceito se limita simplesmente a discussões e atividades partidárias. Quando nos lembramos do artigo escrito por Aristides Lobo e sua imortal frase para definir a proclamação da República “E o povo assistiu àquilo bestializado” (ver box página 68), vemos o disparate que existe entre o conceito de República, que significa coisa pública, do povo, e o que se estruturou no Brasil, relegando a população a segundo plano no processo de instituição das organizações políticas.

Pode ser um exagero dizer que a democracia brasileira é uma farsa, mas não deixa de ser verdade que nossa democracia ainda é muito falha. Sabemos que o cenário de corrupção assola a nação em todas as esferas governamentais. Cabe à população brasileira sair de seu estado letárgico na questão política, vencendo a apatia para finalmente começar a construir a verdadeira República, a verdadeira democracia. Precisamos ter consciência de que aqueles que exercem cargos de administração estão a serviço da população, e que cabe a esta tirá-los do poder quando não representam seus anseios, não realizam aquilo para o qual realmente foram eleitos: administrar a “coisa pública”. O que houve com o ânimo que tanto motivou as massas contra a ditadura civil-militar? Que as levou às ruas na campanha por eleições diretas – a Diretas Já! – e no processo que levou ao impeachment do então presidente Fernando Collor de Melo? Por que sempre vemos os mesmos candidatos, muitas vezes acusados de casos de corrupção e de envolvimento com interesses que não são os da população, e por que eles continuam se elegendo?
Sabemos que um processo de “despertar” político não se dá do dia para a noite. Em um país no qual a Educação é sucateada, professores são mal pagos, a Cultura é relegada, a situação torna-se pior ainda. Porém, está na hora de sair da cultura “carnaval e futebol” e acordar para as questões políticas. Por que defendemos tão ferrenhamente nossos times, mas não nossos direitos? Precisamos reconhecer que Política não é só voto e que a única saída para modificar essa situação é a união da população e a luta para que as medidas tomadas pelos governantes sempre visem o bem comum. Afinal, todo poder emana do povo.

¹ARISTÓTELES, Política, Brasília: Editora Universidade de Brasília
²ARISTÓTELES, apud.
³ARISTÓTELES, apud.

Texto retirado da revista Filosofia Ciência & Vida.

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A Beleza como valor universal

Na contramão do que vem sendo produzido em grande parte do meio artístico na atualidade, o filósofo inglês Roger Scruton clama pela retomada da beleza como critério universal.
A estética é o ramo da Filoso- a que, entre outros temas, ocupa-se do belo. Contudo, e como muitos – inclusive pessoas sem conhecimento especí co de estética ou de técnica artística – têm observado, um curioso fenômeno vem ocorrendo nos últimos 150 anos: o conceito de obra de Arte (outro tema do qual a Estética trata) se estendeu consideravelmente: tijolos, camas desarrumadas, mictórios, copos são considerados obras de Arte pela comunidade especializada, expostos em museus e alvo de olhares tanto admirados quanto espantados. Seja qual for a nova de nição de obra de Arte, ela certamente não inclui a beleza como critério indispensável e eliminatório.
Muito provavelmente todos já tiveram a experiência de, ao estar diante de algumas obras de movimentos que podemos reunir sob o nome de “modernistas”, ser preenchido por um sentimento de estranheza. Isso porque essas obras, na maior parte das vezes, não primam pelo tradicional e universal critério da beleza. Podem ser até feias ou simplesmente não ter sentido algum. Por isso, o passo seguinte de quem as vê é rejeitar essas obras e não considerá-las Arte. Essa é a reação do apreciador comum, que os adeptos de correntes artísticas modernas atribuem à incompreensão ou ao preconceito.
André Assi Barreto é Bacharel em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu (USJT) e Mestrando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Filosofia da Escola Estadual Sapopembawww.andreassibarreto.org
Não é isso, porém, que pensa o filósofo inglês Roger Scruton (1944). Ele, que se dedica a essa questão, faz apologia da beleza e clama pela retomada do belo. E faz isso especialmente em duas de suas obras: um documentário encomendado pela BBC, Why Beauty Matters?¹ e o livro Beauty². Para sustentar sua posição, Scruton remete-se a uma longínqua tradição de filósofos: vai de Platão a Kant, passando pelo conde de Shaftesbury, que influenciou o pensamento de Kant. Também relembra que o objetivo da Arte, seja ela expressa em Poesia, Música, Artes Plásticas e até mesmo Arquitetura, para qualquer pessoa letrada que viveu entre os séculos XVII e XIX era a busca da beleza, um valor, segundo o filósofo, universal, equivalente ao bem e à verdade. É importante destacar essa lembrança, tendo em vista que Scruton é um pensador de matriz conservadora e pretende restabelecer parte da ordem de uma certa tradição (leia o box desta página).
PARA OS evolucionistas, a beleza tem raízes anteriores à Cultura. Biólogos, geneticistas e mesmo filósofos da Ciência buscam evidências de beleza universal como belas paisagens ou simetria corporal para afirmar que, antes de tudo, a beleza não está nos olhos, mas nos genes de quem vê
A reflexão proposta por Scruton é, como ele próprio enfatiza, estritamente filosófica. Poderia ter um viés tanto psicológico quanto evolucionista3para explicar a estética, mas, como mostraremos no tópico “A beleza como inerente à natureza humana”, Scruton fundamenta sua concepção estética em termos exclusivamente filosóficos.
Um dos motes para exemplificar sua argumentação é o clássico Urinol do francês Marcel Duchamp (1887-1968). Duchamp assinou um Urinol com um nome fictício e o expôs como obra de Arte, inaugurando a tendência que é alvo da crítica de Scruton. A partir do século XX, assevera Scruton, a Arte deixou de buscar a beleza e passou a promover um culto à feiura, além de ter por objetivo a originalidade a todo custo. Tal tendência não se restringiu apenas às artes plásticas, mas também tomou conta da arquitetura4, que se tornou “desalmada e estéril”, o que, na avaliação de Scruton, explica a quantidade de prédios abandonados e depredados na Grã-Bretanha e a popularidade de pequenos comércios, instalados em prédios construídos nos moldes da arquitetura vitoriana. Em seu documentário, Scruton rememora, com saudosismo, a cidade onde nasceu, um típico vilarejo com construções vitorianas.
O lósofo inglês considera que vivemos em uma época egoísta, individualista ao extremo, em que cada um está ocupado exclusivamente em garantir o próprio prazer. Por mais de dois mil anos, segundo ele, a Arte serviu como remédio para os problemas da sociedade, uma maneira tanto de relatar como de escapar da infelicidade da vida cotidiana; atualmente, em vez disso, a beleza foi posta de lado e a Arte não serve de refúgio, mas dá suporte ao egoísmo dos nossos dias. Roger Scruton aponta o culto à feiura e o pragmatismo como as principais causas do problema.
NO LIVRO A Condição Humana, Hannah Arendt pensa a obra de Arte como fonte imediata da capacidade humana de pensar. Para ela, tal capacidade transforma a dor inarticulada do animal humano em forma polida que transcende e transforma o sentimento primevo e simboliza o ser no mundo
O CULTO À FEIURA E O PRAGMATISMO 
Dois cultos são responsáveis, de acordo com Scruton, por essa tendência da Arte moderna, que virou as costas para a beleza: o culto à feiura e o culto ao valor prático das coisas. No primeiro caso, argumenta ele, a Arte, ao abandonar a beleza, perdeu seu principal objetivo, o de fazer com que atribuamos sentido à vida, nos consolando das tristezas, como para Platão, ou ainda, como defendiam os filósofos iluministas, ajudando a galgar alguns degraus da escadaria que nos conduz para longe das banalidades do cotidiano.

A partir de um momento decisivo da história da Arte, a beleza teve sua importância diminuída. O propósito da Arte deixa de ser atribuir sentido à vida e é substituído pelo desejo de causar impacto a todo custo. O caminho mais curto para isso, de acordo com Scruton, foi romper com a moral tradicional e estabelecer o escárnio moral. A quebra de tabus passou a ser a bandeira da Arte dita moderna: profanar e dessacralizar o sacro, cultuar o feio, levando todos, dos especialistas ao apreciador comum, à total confusão. Isso se deve a uma concepção de Arte equivocada, dpresente no discurso de parte da crítica: “O repúdio à Beleza ganha força com base em uma visão particular da Arte moderna e de sua história. De acordo com muitos críticos atuais, um trabalho de justi ca a si próprio ao anunciar-se como um visitante do futuro. O valor da Arte está em chocar: a Arte existe para nos despertar de nossa situação histórica e nos lembrar da interminável mudança, que é a única coisa permanente na natureza humana”5.
Já o culto ao valor prático das coisas levou ao estado atual, que, por sua vez, faz com que o valor das coisas resida na sua utilidade prática – o chamado pragmatismo6. Scruton menciona em seu documentário que Oscar Wilde já a rmava que “toda Arte é inútil”, mesma posição de Hannah Arendt. A beleza (e a Arte) não têm utilidade, mas é justamente por isso, enfatiza Scruton, que podemos ressaltar sua importância como valor universal; valor que, no entender do lósofo inglês, está enraizado na própria natureza humana. Com isso ele remete sua apologia da beleza a Shaftesbury e a Kant.

A QUEBRA DE TABUS PASSOU A SER A BANDEIRA DA ARTE 
DITA MODERNA: PROFANAR E DESSACRALIZAR O SACRO, 
CULTUAR O FEIO, LEVANDO TODOS À TOTAL CONFUSÃO
Scruton critica o Urinol de Marcel Duchamp dizendo tratar-se de um “culto à feiura”, que tira da Arte o objetivo de dar sentido à vida e embelezar o cotidiano
A fruição estética é uma atividade desinteressada e, portanto, inútil. Mas isso desmerece em algum sentido a contemplação? Não, no mesmo sentido em que a amizade, o amor, o ato de ouvir uma música ou ainda o sorriso de um bebê, embora não tenham “utilidade prática”, não perdem seu valor nem passam a ser coisas que dispensamos sem sofrer algum tipo de consequência. Mesmo sem ter uma utilidade prática de nida, você já se imaginou sem amor, sem amizade, sem apreciar boa música, bom cinema? Ou, lembrando de novo a arquitetura – inútil, da perspectiva pragmatista –, não nos sentimos muito melhor em um prédio belo? A busca das pessoas, na Grã-Bretanha, de prédios construídos no período vitoriano não corroboraria essa hipótese?
O segredo da Arte tradicional, que servia de bálsamo para a vida, era a valorização da criatividade, ao passo que os movimentos artísticos atuais primam pela exaltação do banal e pela quebra de tabus morais, o que conduz, em primeiro lugar, à impressão e depois à óbvia certeza a que todos, nós e Scruton, chegamos: boa parte do que aí está, e que vem sendo considerado obra de Arte, não o é. Algo não é transformado em Arte, num passe de mágica, por reproduzir as frivolidades cotidianas (como An Oak Tree, de Michael Craig, 1973, que mostra um copo sobre uma prateleira de vidro, ou My Bed, de Tracey Emin, 1998, que é uma cama desarrumada). E nada pode ser chamado obra de Arte por decreto verbal do artista. Para que a Arte retome sua trilha, defende Scruton, é preciso que ela retorne para a beleza, como foi prescrito por lósofos e praticado por artistas de uma tradição de mais de dois mil anos.

L’Estasi di Santa Teresa, de Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), é outra obra que se encaixa no conceito de belo de Scruton. Para o filósofo, não existiria gosto estético “melhor” ou “pior”. Todos teriam como referência um padrão de beleza comum à humanidade.
ADEUS À RAZÃO? A crítica de Scruton não se limita à Arte, mas repousa sobre um diagnóstico muito mais amplo, que também é marca registrada de nossa época: o desprezo à razão7, tão valorizada pelos lósofos iluministas em especial e pelos modernos em geral. Deixam de existir os critérios universais – sejam lógicos ou de gosto – e todas as opiniões passam a ser igualmente válidas, todas as culturas expressam formas de conhecimento igualmente dignas de consideração e têm o mesmo valor epistêmico. Grosso modo: trata-se do relativismo radical apregoado pela maior parte dos lósofos pós-modernos, que também são alvo da crítica feroz de Scruton, como Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Foucault e Richard Rorty.
Certamente que, num mundo onde a Ciência é considerada apenas o mito da nossa era, líderes religiosos islâmicos e prêmios Nobel são autoridades dignas de igual atenção tanto em matéria de física como de biologia, pois, a nal, há apenas o choque de culturas, nem “nossa” cultura está certa em permitir que homens e mulheres votem, tampouco a cultura islâmica está errada em des gurar a face das mulheres adúlteras com ácido, trata-se apenas de culturas diferentes, dignas de igual respeito e consideração. Qualquer coisa diferente disso não passa de “preconceito ocidentalista”, argumenta Scruton em algumas de suas obras e artigos.
Inserindo a discussão estética nesse contexto mais amplo, ca claro que não há o menor espaço para a admissão de um gosto estético “melhor” ou “pior”, alega Scruton; só existiriam gostos estéticos (sempre no plural). Se o seu diz que uma lata contendo excrementos (Artist’s Shit, de Piero Manzoni, 1961) é Arte, quem são todos os outros para dizer que não? Isso porque não há verdadeiro ou falso, não há bem ou mal, certo ou errado; se nada disso existe, por que haveria espaço para o bom ou para o mau gosto estético?
Estética e beleza
Sendo a Estética (ou Filosofia da Arte) o ramo da Filosofia ocupado com os problemas levantados pela
Arte, com considerações sobre a beleza e com as demais formas de expressão da cultura, ela procura
responder a perguntas como “o que é Arte?”, “o que é uma obra de Arte?”, “o que é o belo?” Procura,
também, analisar as questões surgidas na busca de respostas a essas perguntas e nas próprias
respostas. O substantivo foi introduzido da literatura filosófica por Alexander Gottlieb Baumgarten 
(1714-1762) em 1750 com um livro homônimo (Aesthetica)¹.
A beleza, objeto de estudo da estética, é assim tratada por Scruton: “A beleza pode ser consoladora,
perturbadora, sagrada, profana, pode ser hilariante, atraente, inspiradora, reservadamente. Afeta-nos
numa ilimitada variedade de maneiras. Contudo, nunca é vista com indiferença: a beleza demanda que
seja anunciada, fala diretamente a nós como a voz de um amigo íntimo. Se existem pessoas que são
indiferentes à beleza, então isso se deve claramente ao fato de elas não a perceberem”².
¹Abagnanno, Dicionário de Filoso a, 2007, p. 426.
² Beauty, 2009, p. IX. Tradução nossa.

EM UM CONTEXTO NO QUAL TUDO É PERMITIDO, É ESSENCIAL CENSURAR O PROIBIDOR, É UM TOTALITARISMO QUE EXCLUI TUDO AO SEU REDOR, EXCETO OS RELATIVISTAS

Artist’s Shit, do italiano Piero Manzoni (1933- 1963), um dos precursores da Arte Conceitual. Manzoni costumava trabalhar com material “natural” com o objetivo, explicou, de “dar forma concreta a valores autênticos”
Trata-se de um apelo colossal a um subjetivismo totalitário, afirma Scruton. Totalitário em que sentido? Nem mesmo os proponentes do relativismo acreditam no que propõem, pois são os primeiros a censurar aqueles que os reprovam. Se todos os gostos estéticos são igualmente válidos, por que se brada contra os que têm um gosto estético fundado na beleza? É muito simples, afirma Scruton: num contexto em que tudo é permitido, em que nada é proibido, é essencial proibir, censurar o proibidor. É um totalitarismo que exclui tudo ao seu redor, exceto os relativistas.
Mas quais as razões que levam Scruton a rejeitar o subjetivismo estético? Como veremos a seguir, ele considera que a beleza é um valor, dentre alguns outros, que estão enraizados na natureza humana.

Artist’s Shit, do italiano Piero Manzoni (1933- 1963), um dos precursores da Arte Conceitual. Manzoni costumava trabalhar com material “natural” com o objetivo, explicou, de “dar forma concreta a valores autênticos”
BELEZA INERENTE À NATUREZA HUMANA Talvez soe demodé falar de natureza humana hoje em dia8, quer em relação à Filoso a, quer no campo cientí co, mas a argumentação de Scruton segue esse caminho e indica que tanto a busca como a necessidade da beleza são marcas indeléveis da natureza humana. Como uma das características essenciais da natureza humana é a racionalidade, é justamente na busca racional da beleza, autorizada por nossa natureza, que podemos fugir do subjetivismo estético característico de nossa época: “Nenhum gosto pode ser criticado, (...) já que criticar um gosto nada mais é do que dar voz a outro”9. Na contramão dessa a rmação, Scruton argumenta em Beauty que os juízos estéticos têm uma fundamentação racional e, portanto, objetiva. Tanto o subjetivismo estético, “todos os gostos são equivalentes”, como o ceticismo, “não há verdade nem falsidade, erro nem acerto em relação à estética” são peremptoriamente rejeitados por Scruton.
A beleza não entra em competição ou nem sempre, necessariamente, está lado a lado com a bondade. Mas nossa incansável busca da beleza enraíza ambas em nós e nos de ne como humanos: “A beleza está, portanto, rmemente enraizada no esquema das coisas, tal como a bondade. Ela fala a nós, tal como a virtude fala a nós; trata-se de um preenchimento: não de coisas que desejamos, mas de coisas que devemos fazer, porque a natureza humana as requisita10.
Tal como as formas a prori da razão, apresentadas por Kant na Estética Transcendental, a beleza seria uma característica que nos de ne como sujeitos racionais, capazes de compreender o mundo. Tanto sua busca como sua concretização nas mais variadas formas de Arte são necessidades imprescindíveis a todo ser humano. De modo que abdicar da busca da beleza, como a Arte moderna faz, é abrir mão de uma herança cultural riquíssima, é tornar a vida mais difícil, mais cinzenta, fazendo com que a principal função da Arte – fornecer consolo para o cotidiano, como já foi dito aqui – se perca.

A natureza do feio
Se a discussão sobre a natureza da beleza já remonta mais de dois milênios, a feiura foi, em
comparação, muito pouco pensada, tendo sido, inúmeras vezes definida apenas como o 
“oposto do belo”. Entretanto, assim como seu antípoda, o feio tem características próprias e 
particulares. Para dar uma face ao feio, o filósofo e prolífico escritor italiano Umberto Eco (1932-) 
produziu sua História da Feiura, que, irônica e sintomaticamente, só veio 
depois de sua História da Beleza. A obra explora o “feio, que é relativo ao tempo e a cultura”.
Daí observa-se em progressão histórica, em um livro verdadeiramente pictográfico, a lendária feiura 
de Sócrates contrastada com sua beleza interior além do ícone do horror absoluto da antiguidade: 
a Medusa. No intuito de ilustrar a feiúra medieval, Eco seleciona uma sequência artística com os 
três principais tópicos do imaginário cristão da época, sendo elas figuras que mostram o inferno e 
o demônio, representações da morte e a corporalidade e o sofrimento de Cristo e dos mártires. 
Uma conclusão é tomada já que feio é, na maioria das vezes, relacionado ao medo. Mas é na última 
parte do livro que o autor abre o jogo e conceitualiza o que ele quer dizer com feiura. E usa como 
exemplo esclarecedor o trítono, que é o intervalo entre notas musicais proibido na Idade Média. 
Isso porque se dizia que ele evocava diabolus por conta da tensão e excitação causada nos ouvintes. 
Logo, o feio é o que causa tensão, algo explicitado no livro por uma fala de George Romero, diretor 
do filme clássico e atual em suas escolhas estéticas A noite dos Mortos Vivos.

1Por que a beleza importa?, 2009.
2O livro, lançado em 2009, ainda não tem tradução para o português.
3A despeito da rejeição de Scruton, para os interessados nessa perspectiva sugerimos o lósofo Dennis Dutton, na palestra “A darwinian theory of beauty”. Ver Referências.
4Scruton também tem um excelente livro, este traduzido para o português, sobre arquitetura, intitulado Estética da Arquitetura (Lisboa: Edições 70, 2010).
5 Beauty, 2009, p. 169. Tradução nossa.
6A referência é o pragmatismo atribuído ao lósofo estadunidense Richard Rorty (1931-2007).
7A posição de Scruton pode ser melhor compreendida com a leitura do texto
“What ever happened to reason” de 1999.
8Ou nem tanto, se levarmos em consideração o trabalho esplendoroso do canadense Steven Pinker, psicólogo, professor e pesquisador de ciências cognitivas em Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana.
9Beauty, 2009, p. IX, tradução nossa.
10Idem, p. 147, tradução e grifo nossos.

Texto tirado da revista: Filosofia Ciência & Vida

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Moda: uma sociedade com os sentidos embotados


A sociedade de consumo encontrou na neofilia a droga estimulante perfeita para as infinitas frustrações causadas pela publicidade e suas promessas não cumpridas. E a moda é peça-chave para esse mecanismo.


A moda é uma das tendências sociais que acompanha o desenvolvimento das civilizações desde tempos imemoriais. Uma perspectiva moralista poderia imputar uma análise apurada da constituição da moda como algo espúrio ou intelectualmente inferior. Nada mais preconceituoso, pois, uma vez que a moda é um fenômeno comportamental arraigado nas sociabilidades, ela representa a expressão de valores estéticos e padrões de gosto de uma época ou até mesmo o símbolo do grupo detentor do padrão estilístico de uma organização cultural. Mais ainda, diversos filósofos, sociólogos, psicólogos e demais pensadores de porte dedicaram valiosos escritos ao estudo da moda nas suas mais diversas interfaces éticas, sociais e econômicas, circunstância que comprova a extrema importância da problematização contínua dessa questão. Neste texto enfatizaremos duas características fundamentais dos processos constituintes do discurso da moda: sua falsa noção de singularidade e sua excitação psíquica pelo novo.
A palavra “moda” é de origem latina, modus, e significa “modo”, “maneira”. Cabe ressaltar que há ainda uma proximidade semântica entre as palavras “moda” e “moral”, mores, “costume”, “hábito”. Enquanto a moral tradicionalmente se encarrega de orientar as vidas humanas através de prescrições universalistas de conduta visando o estabelecimento da ordem social e do bem comum, a moda visa estabelecer padrões de estilo, regulando o uso de vestuários, consumo de bens e critérios de gosto. Podemos então afirmar, mediante essas similitudes, que a moda se caracteriza na era moderna como uma espécie de moralidade secularizada.

A tirania da moda e a servidão para a marca
Na contemporaneidade, a moda se enraíza na organização capitalista como uma espécie de extensão 
sutil da estrutura normativa da sociedade disciplinar: a massa de consumidores é simbolicamente 
pressionada a seguir gostos predeterminados pelos “sacerdotes do consumo”, isto é, os estilistas 
e seus tentáculos comerciais, os publicitários. Tal como argumenta o sociólogo alemão Siegfried K., 
“uma vez que uma moda se impõe, logo é imitada por todos e o mundo inteiro tenta apoderar-se dela”¹.
O indivíduo que não se submete aos padrões estabelecidos pelo sistema normativo da moda é excluído 
dos grupos sociais regidos pela lógica identitária da igualdade de estilo. O filósofo e ensaísta francês 
Dominique Quessada salienta que cada homem que aceita uma marca demonstra sofrer a tirania desta, 
e, aceitando-a, não pode fazer outra coisa senão sustentar e transmitir a tirania. Assim, ele a propaga. 
Cada homem que expõe uma marca se mantém na servidão voluntária, e não pode fazer outra coisa 
a não ser transmiti-la². Dessa maneira, a moda apresenta um teor tecnicamente fascista, pois exige 
do indivíduo que anseia participar da lógica social das aparências uma devoção incondicional pelo padrão 
estabelecido. Para Lipovetsky, a moda, primeiro grande dispositivo a produzir social e regularmente a 
personalidade aparente, estetizou e individualizou a vaidade humana, conseguiu fazer do superficial 
um instrumento de salvação, uma finalidade da existência³.
¹KRACAUER, O Ornamento da Massa, p. 267.
²QUESSADA, O Poder da Publicidade na Sociedade Consumida Pelas Marcas, p. 155.
³LIPOVETSKY, O Império do Efêmero, 2006, p.39.

O DISCURSO DA MODA PROMETE AO CONSUMIDOR A FALSA POSSIBILIDADE DE SE TORNAR UMA PESSOA SINGULAR, DIFERENTE DO REBANHO SOCIAL ANÔNIMO

Renato Nunes Bittencourt é doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ, professor do curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA, da Faculdade Flama e do Departamento de Filosofia do Colégio Pedro II. Também é membro do grupo de pesquisa Spinoza & Nietzsche
PAIXÃO PELO MODERNO 
O filósofo francês Gilles Lipovetsky (1944-) destaca que, com a moda, aparece uma das primeiras manifestações de uma relação social que encarna um novo tempo legítimo e uma nova paixão própria ao Ocidente, a do “moderno”. A novidade tornou-se fonte de valor mundano, marca de excelência social; é preciso seguir “o que se faz” de novo e adotar as últimas mudanças do momento1. O processo de efervescência social dos ditames da moda foi analisado de maneira perspicaz por Immanuel Kant (1724-1804), circunstância que demonstra a relevância filosófica do tema para a elaboração de uma análise crítica dos signos sociais: “O engenho é inventivo na moda, isto é, regras de comportamento adotadas que só agradam pela novidade, e, antes de se tornarem (concorda com ‘regras’)costume, terão de ser trocadas por outras formas igualmente passageiras”².

Lipovetsky aponta que a moda é um sistema original de regulação e de pressão sociais: suas mudanças apresentam um caráter constrangedor, são acompanhadas do “dever” de adoção e de assimilação, impõem-se mais ou menos obrigatoriamente a um meio social determinado – tal é o “despotismo” da moda, denunciado com tanta frequência ao longo dos séculos³.
PROMESSAS NÃO CUMPRIDAS
O discurso da moda promete ao consumidor a falsa possibilidade de se tornar uma pessoa singular ao adquirir determinado produto, diferenciando-se assim do rebanho social anônimo. Afinal, cada indivíduo sonha em se destacar da cuba humana e atingir um patamar social de venerabilidade, utilizando-se de todos os meios econômicos para obter tal distinção, cabendo assim o comentário do sociólogo estadunidense Don Slater: “As pessoas compram a versão mais cara de um produto não porque tem mais valor de uso do que a versão mais barata (embora possam usar essa racionalização), mas porque significa status e exclusividade; e, claro está, esse status provavelmente será indicado pela etiqueta de um designer ou de uma loja de departamentos”4.

Entretanto, a voz sedutora da moda não é direcionada apenas para um indivíduo eleito dentre a multidão, e sim para uma coletividade de consumidores economicamente aptos a adquirir os produtos e seguir padrões estilísticos extrínsecos. Percebemos dessa maneira quão falseador é o mecanismo publicitário apresentado cotidianamente nos meios de comunicação de massa. Assim, a moda ilude a consciência do consumidor, fazendo-o acreditar que ele se diferencia dos demais usando determinada roupa ou consumindo dado produto, quando, em verdade, ele apenas transferiu sua capacidade de decisão aos ditames duvidosos dos estilistas.
Moda na Antiguidade: afresco encontrado em Pompeia mostra tinturaria romana da época de Vespasiano (século I)
Ocorre nesse processo a aniquilação da autonomia do consumidor, circunstância que revela a incompatibilidade entre o projeto filosófico do Iluminismo e as falácias publicitárias associadas aos paradigmas normativos da moda, que nos mantêm subjugados ao estado de menoridade existencial. Todavia, o consumidor encantado por esse discurso idolatra piamente os seus próprios controladores ideológicos, que sabem pensar por ele em todos os quesitos do gosto. Há assim uma redução estética do indivíduo, que visa obter emoções fortes supostamente unívocas em cada ato de consumo, quando em verdade vivencia experiências repetitivas sem perceber a nuance dessa relação de forças. O sociólogo estadunidense Richard Sennett (1943 -) destaca que o consumidor busca o estímulo da diferença em produtos cada vez mais homogeneizados. Ele se parece com um turista que viaja de uma cidade clonada para outra, visitando as mesmas lojas, comprando em cada uma delas o mesmo produto5. A liberdade humana perante o universo da moda e dos seus objetos consagrados consiste apenas na possibilidade de escolher entre a marca “A” ou “B”, associada de imediato a produtos previamente criados visando satisfações universais.
As especialistas do mercado de moda Daniela Dwyer e Marta Feghali afirmam que já se foi o tempo em que a moda se voltava quase que de maneira integral ao atendimento de seus públicos básicos – masculino e feminino – e de maneira uniforme. A dinâmica da moda requer cada vez mais especialização em segmentos diferenciados, como a vanguarda, o fashion, os esportes radicais, ou seja, em todas as inovações criadas pelas culturas e pelo próprio setor6. Essa “revolução” nos padrões da moda, no entanto, deve ser interpretada de maneira rigorosamente crítica: tal assimilação das diferenças até então excluídas nasceu da necessidade capitalista de ampliação do mercado de consumo.

KONRAD LORENZ SENTENCIA QUE O MÉTODO MAIS IRRESISTÍVEL PARA MANIPULAR MASSAS PELA SINCRONIZAÇÃO DE SUAS ASPIRAÇÕES É FORNECIDO PELA MODA

ATÉ OS anos 1920, a mentalidade de produção era voltada para a satisfação de necessidades consideradas “reais”. Após a crise da bolsa de 1929, os capitalistas conscientizaram-se da “necessidade da criação de necessidades” artificiais, visando o aumento do consumo percapita
O filósofo austro-francês André Gorz (1923-2007) aponta de modo categórico que, em mercados virtualmente saturados, a única forma de crescimento possível é a rapidez com que se sucedem os gostos, as preferências e as modas. Não se trata simplesmente, para as empresas, de “responder” de maneira quase instantânea à “demanda” cada vez mais volátil dos clientes: devem adiantar-se a ela, acentuar, criar a volatilidade, a inconsistência, o caráter efêmero das modas e dos desejos, opor-se a toda normalização e a todo senso de normalidade7.
Constatamos, na conjuntura do capitalismo tardio, a efervescência de inúmeras tendências de moda que agregam uma miríade de grupos humanos e de estilos. Poderíamos afirmar que tal inclinação hodierna decorra da efetiva aceitação dessas tribos pelo sistema capitalista, tradicionalmente excludente. Ora, em verdade negros, obesos e outros segmentos são representados por estilos da moda porque os estrategistas do capitalismo perceberam que todo grupo dotado de razoável poder aquisitivo não deve mais ser posto de lado em uma dinâmica econômica que exige cada vez mais participação da esfera de consumidores. Daniela Dwyer e Marta Feghali salientam ainda que, hoje, a concorrência se faz no estilo, no design e na moda, exigindo capacidade de organizar a produção de maneira flexível, no sentido de possibilitar respostas rápidas às mudanças de tendência e às demandas do consumidor8.
Podemos afirmar que se trata de fenômeno similar ao ocorrido na abolição da escravidão nos países que realizavam tal prática: não obstante o autêntico humanitarismo de diversos intelectuais contrários a esse sistema terrífico, a motivação maior para a extinção desse regime ocorreu em função da necessidade da ampliação do mercado de consumo. Se antes o escravo era submisso ao senhor, no decorrer do capitalismo passa a ser submisso ao poder mágico do capital. O mesmo ocorreu com os grupos sociais relativamente emancipados na (mal)dita pós-modernidade.
A busca compulsiva pelo novo leva a escolhas cada vez mais parecidas (mas que pretendem ser distintivas), dentro de possibilidades cada vez mais limitadas
Nesse contexto, o filósofo e etólogo austríaco Konrad Lorenz (1903-1989) sentencia que o método mais irresistível para manipular grandes massas humanas pela sincronização de suas aspirações é fornecido pela moda. Certamente, na origem, ela deriva simplesmente da aspiração humana generalizada de tornar visível a própria dependência de um grupo cultural ou étnico9.
Na experiência prosaica, diz-se que uma pessoa vestida de maneira elegante, conforme a exigência normativa da moda, está “bonita”. Esse discurso sedutor representa a essência fetichista da moda: a roupa adquire propriedades mágicas e serve de interposto entre as pessoas, mediadas a partir de então por objetos, subvertendo- se assim o Ser pelo Ter10.
Se porventura o indivíduo está “bem vestido”, ele se torna intrinsecamente belo. Nesse juízo de valor não entram em questão as qualidades interiores desse indivíduo nem mesmo sua beleza aparente. Na sociabilidade das aparências, estabelecida pelos critérios normativos da moda, a essência do sujeito é determinada por aquilo que ele veste e sua palavra de ordem é “eu sou aquilo que eu visto”, criando-se assim uma distorcida noção de identidade. Esta é criada pelas experiências do indivíduo no decorrer de sua existência, suas redes sociais, sua interioridade e sua subjetividade; nessas circunstâncias, o apreço por dado estilo ou tendência representa um fragmento de sua identidade, mas jamais a identidade em si, como uma essência capaz de ser plenamente revelada por roupas e signos estilísticos.

JEAN BAUDRILLARD É INCISIVO AO AFIRMAR QUE A MODA – E O CONSUMO, QUE É INSEPARÁVEL DA MODA – MASCARA UMA INÉRCIA SOCIAL PROFUNDA

Estilistas da alta costura como o ítalo-francês Pierre Cardin (1922-) atuam como oráculos pós-modernos, criando tendências “novas e obrigatórias”
O filósofo-sociólogo austríaco Georg Simmel (1858-1918) aponta que a moda nada mais é do que uma forma particular entre muitas formas de vida, graças à qual a tendência para a igualização social se une à tendência para a diferença e a diversidade individual num agir unitário11. Com efeito, todo estilo que escapa do limitado âmbito do princípio de identidade – tal como estabelecido pelo sistema normativo da sociedade regida pelos ditames da moda – é estigmatizado como “estranho”. Essa disposição coercitiva é uma espécie de violência simbólica contra a dignidade da condição humana, caracterizada pela existência, para cada pessoa, de uma singularidade própria, axiologicamente intransferível, independentemente de critérios morais de conduta.
Nessa conjuntura, o filósofo francês Jean Baudrillard (1929-2007) é incisivo ao afirmar que a moda – e mais amplamente o consumo, que é inseparável da moda – mascara uma inércia social profunda. Ela própria é fator de falência social, na medida em que, por meio das mudanças à vista, e muitas vezes cíclicas, de objetos, de vestuários e de ideias, nela se ilude e desilude a exigência de mobilidade social real12.

SENTIDOS SATURADOS E BUSCA DE ESTÍMULO
A busca das novidades de consumo apresenta dois problemas cruciais para a situação psicológica do indivíduo regido pelos signos efervescentes da moda: 1. cria a excitabilidade ansiosa pela aparição daquilo que é “novo” no regime do consumo; 2. estabelece a falsa relação de causalidade entre “novo” e “bom”. Ora, aquilo que é novo não é de modo algum necessariamente dotado de qualidade. Georg Simmel, com sua perspicácia característica, afirma que “a mudança da moda mostra a medida do embotamento da sensibilidade; quanto mais nervosa for uma época, tanto mais depressa se alteram as suas modas, porque a necessidade de estímulos diferenciadores, um dos sustentáculos essenciais de toda a moda, caminha de braço dado com o esgotamento das energias nervosas”13.

Para Hannah Harendt já não era possível usar as coisas que nos cercam respeitando e preservando sua durabilidade. Haveria uma necessidade de “devorá-las” embutida no receio de vê-las deterioradas
A neofilia é o impulso psicológico decorrente da necessidade de investir em uma miríade de aquisições como forma de manter a consciência direcionada para o ato de consumo das novidades outorgadas pela moda. Lipovetsky, por sua vez, destaca: “Enquanto o princípio-moda ‘tudo o que é novo apraz’ se impõe como rei, a neofilia se afirma como paixão cotidiana e geral. Instalaram- se sociedades reestruturadas pela lógica e pela própria temporalidade da moda; em outras palavras, um presente que substitui a ação coletiva pelas felicidades privadas, a tradição pelo movimento, as esperanças do futuro pelo êxtase do presente sempre novo”14.
A vida na civilização regida pela sôfrega erupção das novidades exige de cada indivíduo uma capacidade mais potente de assimilação dos múltiplos estímulos comunicacionais despejados pela tríade composta por moda, sociedade de consumo e publicidade. Detectando essa nuance própria da realidade capitalista, Konrad Lorenz argumenta que a neofilia é um fenômeno bem-vindo aos grandes produtores, que, graças ao doutrinamento das massas, exploram a fundo essa tendência, capaz de lhes dar grandes lucros15. Por conseguinte, é imprescindível que o regime capitalista se aproveite das ondas cada vez mais aceleradas da moda para conseguir frustrar continuamente as pessoas, fazendo com que brote nelas, de modo constante, novos desejos de compras, mantendo-se assim o círculo vicioso que amalgama confusão interior, ansiedade, frustração psicológica e os estímulos intermitentes para o consumo.
Hannah Arendt (1906-1975) percebeu o dispositivo alienante existente na obsolescência dos produtos veiculados pelo sistema da moda ao afirmar que, em nossa necessidade de substituir cada vez mais depressa as coisas mundanas que nos rodeiam, já não podemos nos dar ao luxo de usá-las, de respeitar e preservar sua inerente durabilidade; temos de consumir, devorar, por assim dizer, nossas casas, nossos móveis, nossos carros, como se fossem as “boas coisas” da natureza que se deteriorariam caso não fossem logo trazidas para o ciclo infindável da mutabilidade do homem com a natureza16.


Como um adicto, o público consumidor de moda busca sempre uma “droga mais forte”. Para ele, o “novo” acaba sendo sinônimo de “bom”
O desejo extremado pelo novo, no contexto alienante da sociedade de consumo, longe de representar uma abertura existencial para a contínua capacidade de transformação das condições corriqueiras de vida para uma experiência pessoal mais criativa, significa a impotência humana de preservar sua serenidade psíquica, bombardeada por estímulos sensórios intensos. Tal como argumenta Siegfried Kracauer (1889-1966), “na medida em que não somos determinados pelo interior, a moda pode impor seu próprio domínio em quase todas as esferas do ser, dirigir várias atividades e expressões de acordo com seus próprios desejos. Além disso, tornamo-nos nervosos, amamos a mudança e talvez por isso mesmo queiramos fugir do esvaziamento da alma; estas características e tendências favorecem o surgimento da moda, do nosso desejo por tudo o que é novo”17.
O próprio luxo, considerado sinônimo de sofisticação pela sociedade abastada e pela ditadura da moda, que legitima ideologicamente aquilo que é de bom gosto ou vulgar, nada mais seria do que sintoma de decadência existencial, segundo a perspicaz colocação de Friedrich Nietzsche (1844-1900): “A Igreja e a moral dizem: ‘o vício e o luxo levam uma estirpe ou um povo à ruína’. Minha razão restaurada diz: se um povo se arruína, degenera-se fisiologicamente, seguem-se daí o vício e o luxo (ou seja, a necessidade de estímulos cada vez mais fortes e mais frequentes, como sabe toda natureza esgotada)”18. Com efeito, o organismo embotado exige um tônico estético que intensifique a existência despersonalizada, diluída em um ritmo de vida alienante, degradante, e os signos da moda e os bens do mercado de luxo se encaixam nesse dispositivo de fortalecimento artificial da existência.
Permanece, todavia, o anseio cada vez maior pela satisfação das necessidades desiderativas, intrinsecamente insatisfeitas, exigindo a constante intensificação das sensações, de modo a manter a personalidade razoavelmente ativa. Moda e consumismo se tornam temperos que concedem sabores pretensamente mais sofisticados a um paladar doente, incapaz de perceber a frugalidade e a sobriedade da simplicidade da vida. Lipovetsky constata que “a sociedade de consumo criou em grande escala a vontade crônica dos bens mercantis, o vírus da compra, a paixão pelo novo, um modo de vida centrado nos valores materialistas”19. Essas experiências negativas de insatisfação existencial tendem a criar uma personalidade dependente da elevação constante do índice de consumo para que se venha assim a obter estados fugazes de prazer. Os especuladores do sistema da moda prosperam economicamente em função da ausência de pensamento e senso crítico dos consumidores capitalistas.
1LIPOVETSKY, O Império do Efêmero, p. 33.
2KANT, Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático, p. 119.
3LIPOVETSKY, O Império do Efêmero, p. 39-40.
4SLATER, Cultura do Consumo e Modernidade, p. 156.
5SENNETT, A Cultura do Novo Capitalismo, p. 137.
6DWYER & FEGHALI, As Engrenagens da Moda, p. 10.
7GORZ, Misérias do Presente, Riqueza do Possível, p. 37.
8DWYER & FEGHALI, As Engrenagens da Moda, p. 23.
9LORENZ, Os Oito Pecados Mortais do Homem Civilizado, p. 99.
10MARX, O Capital, Vol. I, p. 81.
11SIMMEL, Filosofia da Moda, p. 24.
12BAUDRILLARD, Para uma Crítica da Economia Política do Signo, p. 35.
13SIMMEL, Filosofia da Moda, p. 30.
14LIPOVETSKY, Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna, p. 60-61.
15LORENZ, Os Oito Pecados Mortais do Homem Civilizado, p. 50.
16ARENDT, A Condição Humana, p. 138.
17KRACAUER. O Ornamento da Massa, p. 267.
18NIETZSCHE, Os Quatro Grandes Erros, § 2. In Crepúsculo dos Ídolos.
19LIPOVETSKY, A Felicidade Paradoxal, p. 36.


Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. de Alberto Raposo. Rio de Janeiro: 
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BAUDRILLARD, Jean. Para uma Crítica da Economia Política do Signo
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DWYER, Daniela & FEGHALI, Marta Kasznar. As Engrenagens da Moda
Rio de Janeiro: SENAC-RIO, 2000.
GORZ, André. Misérias do Presente, Riqueza do Possível. Trad. de Ana Montoia. 
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KANT, Immanuel. Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático. Trad. de Clélia 
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___________. “Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna” In: CHARLES, Sébastien; 
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LORENZ, Konrad. Os Oito Pecados Mortais do Homem Civilizado. Trad. de Henrique Beck. 
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MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. Trad. de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: 
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QUESSADA, Dominique. O Poder da Publicidade na Sociedade Consumida Pelas 
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SENNETT, Richard. A Cultura do Novo Capitalismo. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: 
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SIMMEL, Georg. Filosofia da Moda e Outros Escritos. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Texto 
e Grafia, 2008.
SLATER, Don. Cultura do Consumo e Modernidade. Trad. de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: 
Nobel, 2002.


Texto Retirado da Revista Filosofia Ciência & Vida


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