Hannah Arendt, pensadora da política e da liberdade


A autora de origem judia, perseguida pelo regime de Adolf Hitler, construiu uma obra fundamental para a compreensão da política e da condição humana
Por Sergio Amaral Silva*

*Sergio Amaral Silva é jornalista formado pela USP, escritor e vencedor do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, categoria Literatura.
Martin Heidegger
(1889-1976), filósofo alemão. Vocacionado para o sacerdócio, estudou em seminário antes de matricularse na universidade de Freiburg, onde lecionou a partir de 1928. Em 1933, com a ascensão do nazismo, filiou-se ao partido de Hitler, assumindo o cargo de reitor, do qual se demitiu por discordar da perseguição aos professores judeus. Sua obra completa foi editada em 70 volumes, dos quais Ser e tempo (1927) celebrizouo, lançando as bases de sua filosofia existencial.

Hannah Arendt não gostava muito de ser tratada como filósofa, preferindo a denominação de cientista política. Da mesma forma, costumava referir-se a seus textos como "de teoria" ou simplesmente "escritos", não lhe satisfazendo igualmente a classificação de "filosofia política". Em virtude de suas abalizadas análises políticas, ela recebeu importantes distinções como o Prêmio Lessing de 1959 e o Sonning de 1975, este concedido pela Universidade de Copenhague, uma tradicional instituição de ensino dinamarquesa fundada em 1479. Arendt foi agraciada em reconhecimento ao seu mérito em favor do desenvolvimento da cultura europeia. Entre os ganhadores do Prêmio Sonning, concedido a cada dois anos, figuram os nomes da filósofa húngara Ágnes Heller, do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, do cineasta sueco Ingmar Bergman, do dramaturgo italiano Dario Fo e da filósofa, teórica do feminismo e escritora francesa Simone de Beauvoir.
O pluralismo político era um dos conceitos básicos pregados por Hannah Arendt, na vigência do qual a igualdade política e a liberdade se manifestariam naturalmente entre as pessoas, com tolerância e respeito às diferenças, numa perspectiva de inclusão. Agentes com disposição e capacidade específica devem ter atuação prática em leis, convênios e acordos de natureza política. Em consequência desse tipo de ideia, ela privilegiava a democracia direta ou um sistema de conselhos em detrimento de formas de democracia representativa, em relação às quais adotava uma postura claramente crítica.

Algumas Ideias de Hannah Arendt (trechos selecionados)
"A esperança que inspirou Marx e os melhores homens dos dive rsos movimentos operários - a esperança de que o tempo livre eventualme nte em ncipará os homens da necesidade (...) - repousa sobre a ilusão de uma filosofia meca nicista que assume que a força despendida no trabalho, como qualquer outra, nunca se perde, de modo que, se ela não for gasta e exaurida no trabalho duro de ganhar a vida , ela automaticamente alimentará outras e 'mais elevadas ' atividades . O modelo que guiou a esperança de Marx quanto a isso foi sem dúvida a Atenas de Péricles, a qual, no futuro, com a ajuda do enorme aumento da produtividade do trabalho humano, não mais precisaria de escravos para se sustentar e, assim, poderia tornar-se real idade para todos. Cem anos depois de Marx, sabemos da falácia do seu raciocínio; o tempo livre do animal laborans (animal trabalhador) nunca é gasto em nada a não ser no consumo e, quanto mais tempo ele adquire, mais gananciosos e vorazes se tornam seus apetites ."
(De A condição humana, Forense Universitária)


Apesar de, ao longo de sua vida, ter sido avessa ao rótulo de "filósofa", Arendt segue sendo estudada como filósofa influente, em decorrência também de suas discussões críticas de pensadores clássicos da Filosofia, tais como Platão, Aristóteles, Sócrates e Santo Agostinho, sem falar em importantes representantes da filosofia moderna, como Immanuel Kant, a Martin Heidegger, Nicolau Maquiavel, Charles de Montesquieu e Karl Jaspers. Foi precisamente devido a sua independência de pensamento, seus estudos no campo da filosofia existencial, sua abrangente teoria sobre o surgimento do totalitarismo e sua decidida atuação em favor da liberdade no âmbito da discussão política, que Arendt assegurou a posição central que ocupa nos debates contemporâneos.

Quem foi Hannah Arendt
Nascida em Hannover, na Alemanha, em 14 de outubro de 1906, de origem judaica, foi batizada como Johanna Arendt. Tendo perdido o pai com sete anos incompletos, mostrou-se precoce ao tentar consolar sua mãe, Martha Arendt: "Pense - isso acontece com muitas mulheres", teria dito a menina, para espanto da viúva. Recebeu da mãe, que tinha simpatia por ideias da social-democracia, uma educação marcadamente liberal. Ainda na adolescência, teve contato com a obra de Kant. Aos dezessete anos, abandonou a escola por questões disciplinares. Transferiu-se para Berlim, onde estudou teologia e a filosofia do dinamarquês Soren Kierkegaard. Em 1924, passou a frequentar a universidade de Marburg. Ali permaneceu um ano, durante o qual assistiu aulas de Filosofia com Martin Heidegger - com quem manteve, em seguida, um relacionamento amoroso complicado - e Nicolai Hartmann; teologia protestante com Rudolf Bultmann; e grego. Arendt formou-se em Filosofia em Heidelberg.
Em 1929, época da recessão mundial provocada pela quebra da Bolsa de Nova York, Arendt mudouse para Berlim, com uma bolsa de estudos. Com a ascensão do nazismo ao poder, em 1933, ela foi para a capital francesa, onde conheceu grandes intelectuais, a exemplo do filósofo e escritor Walter Benjamin. Na ocasião, trabalhou como secretária da baronesa Rotschild, de uma tradicional família de banqueiros.
Na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o governo da França cooperou com os invasores alemães, a judia Hannah foi mandada a um campo de concentração, como "estrangeira suspeita". Todavia, conseguiu fugir para Nova York, onde chegou em 1941.
Exilada e apátrida (perdeu a nacionalidade alemã), permaneceu dez anos sem direitos políticos, obtendo a cidadania estadunidense em 1951. Nos Estados Unidos, Hannah trabalhou em várias organizações judaicas e editoras, como a Schoken Books, tendo escrito também para o periódico Weekly Aufba. Naquele país, ela desenvolveu efetivamente sua carreira acadêmica, contratada em 1963 pela Universidade de Chicago. No ano seguinte, entraria para a American Academy of Arts and Letters. Em Chicago, Arendt foi professora até 1967, quando se transferiu para Nova York, dando aulas na New School of Social Research. Faleceu em 4 de dezembro de 1975.

Robert Lowell
Robert Traill Spence Lowell IV (1917-1977) foi um poeta estadunidense, considerado um mestre da poesia confessional. Ganhador do Prêmio Pulitzer, foi professor universitário. Na década de 1960, atuou como ativista dos direitos civis, tendo se oposto à participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. A obra literária de Lowell é composta por cerca de vinte títulos.
A leitura cuidadosa de seus textos é fundamental para quem deseja compreender adequadamente o século passado, principalmente em termos políticos, um tempo marcado por conflitos, pela exacerbação de nacionalismos e intolerância. A esse respeito, é relevante o depoimento de Pedro Duarte, doutor em Filosofia e professor adjunto da Universidade Federal Estadual do Rio de Janeiro (Unirio):
"Parece-me que uma das principais contribuições do pensamento de Hannah Arendt para o século 20 foi ter mostrado que seus horrores, como os regimes totalitários e os campos de concentração, não foram resultados de um excesso de política. Pelo contrário, tais regimes esvaziaram o exercício da liberdade, que é o sentido da política. Mais atual que isso, porém, é o fato de que Hannah Arendt recusava a compreensão da política como gerenciamento e administração, tão comum hoje em dia. Para ela, a política não tem um caráter instrumental, ela não é só um meio para alcançar um fim, ou seja, a política possui uma dignidade própria. Essa dignidade reside em que é na política que experimentamos o prazer de aparecermos singularmente uns para os outros em ações e palavras dentro do âmbito público. Esse conceito de política impede que tratemos os cidadãos como simples consumidores. Nesse sentido, a política não é o que garante a nossa liberdade privada, mas é, ela mesma, já uma experiência de liberdade".

Algumas Ideias de Hannah Arendt (trechos selecionados)
"A política base ia-se na plu ral idade dos home ns. Deus criou o homem, os homens são um produto huma no mu ndano, e produ to da natureza huma na. A filosofia e a teologia semp re se ocupam do homem , e todas as suas af irma ções seriam corretas mesm o se houvesse apenas um homem, ou apenas dois homens, ou apenas homens idênticos. Por iss o, não encontraram nenhuma resp osta filosoficamente válida pa ra a pergunta: o que é política ? (...) É su rpree nde nte a dife rença de categoria entre as filosofias políticas e as obras de todos os grandes pensad ores - até mesm o de Pla tão. (...) A política trata da convivência entre diferentes . Os homens se organizam politicamente pa ra ce rtas coisas em comum, esse nciais num caos absolu to, ou a pa rtir do caos absolu to das diferenças" (De O que é política?, Bertrand do Brasil)

Um século em dois livros
The New Yorker
Revista cultural semanal fundada nos EUA em 1925 pelo jornalista Harold Ross. Inicialmente, destinava-se a ser um veículo de humor sofisticado, mas logo ampliou essa ideia e construiu seu prestígio jornalístico internacional publicando crítica, ensaios, reportagens investigativas e ficção. Nesses 85 anos, sua extensa lista de colaboradores inclui importantes jornalistas e escritores, bastando lembrar que, além de Hannah Arendt, também John Hershey e Truman Capote escreveram suas obrasprimas originalmente como reportagens para a revista. Seu atual editor é David Ramnick, autor de A ponte, um perfil do presidente dos EUA Barack Obama.
Em especial, dois títulos da autora, conhecida como "pensadora da liberdade", são considerados essenciais ao entendimento de fenômenos ocorridos no século 20 e que de certa forma nos ajudam a compreender questões contemporâneas: Origens do totalitarismo, publicado em 1951, e Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, de 1963.
Dividido em três partes ("Antissemitismo", "Imperialismo" e "Totalitarismo"), Arendt descreve em Origens do Totalitarismo a formação de um aparato de destruição no continente europeu, que acabou conduzindo ao terrível episódio do Holocausto. Reúne o nazismo do Terceiro Reich ao comunismo stalinista como ideologias totalitárias, demonstrando como estas dependem de alguns fatores: da falta de uma perspectiva crítica em relação ao discurso oficial; da manipulação das massas; ou da banalização de atos de terror. Sob esse ponto de vista, líderes como Hitler ou Stalin podem ser encarados como faces de uma só moeda, que subiram ao poder graças a uma bem-sucedida exploração da "solidão organizada" das massas populares.
Já no polêmico Eichmann em Jerusalém, que o poeta a Robert Lowell classificou como "obra-prima", Arendt analisa a personalidade do nazista Karl Adolf Eichmann, tenentecoronel da Schutzstaffel (SS) e gerenciador da "indústria da morte" nazista. O livro surgiu de uma série de cinco grandes reportagens escritas por encomenda da revista a The New Yorker, prestigiado veículo de imprensa para a qual Arendt cobriu, em 1961, o julgamento de Eichmann, que no ano anterior fora localizado e capturado por agentes da Mossad, serviço secreto de Israel, em uma operação realizada na Argentina.

Obras Publicadas


 Blaise Pascal
(1623-1662) foi um afamado filósofo e matemático francês. Com seus estudos, contribuiu significativamente para a criação da Geometria projetiva e da Teoria das Probabilidades. No campo da física, uma de suas realizações foi o estabelecimento do princípio básico de funcionamento do macaco hidráulico. Uma das frases mais famosas de sua obra filosófica é a que afirma que "o coração tem razões que a própria razão desconhece".
Ao evidenciar no livro a "mediocridade" do réu, a autora formula o conceito de "banalidade do mal". Ao depor, Adolf Eichmann disse que apenas cumpria ordens superiores e que achava uma desonestidade não cumprir a tarefa que lhe foi atribuída, ou seja, o extermínio sistemático dos judeus, na chamada "Solução Final". Segundo Arendt, havia verdade naquela fala do oficial nazista condenado à morte por crimes contra a humanidade, em sentença proclamada no dia 15 de dezembro de 1961: sem ser um desalmado ou paranoico, como acreditavam os ativistas judeus, tratava-se de um homem comum, porém desprovido da capacidade, presente na maioria dos indivíduos, de raciocinar por si próprio. Tal afirmação remete a uma máxima de a Blaise Pascal, para quem "não existe nada mais difícil do que pensar".
Um complemento interessante ao livro de Arendt é encontrado em uma recente obra cinematográfica. Dirigido pelo cineasta inglês Stephen Daldry, o filme O leitor (2008), baseado no romance de mesmo título do escritor e jurista alemão Bernhard Schlink, conta a história de uma relação amorosa entre Michael Berg, um estudante de 15 anos (interpretado na juventude por David Cross e na maturidade por Ralph Fiennes) e Hanna Schmitz, funcionária da companhia de bonde, cerca de 20 anos mais velha. O papel de Hanna Schmitz rendeu a Kate Winslet o Oscar e o Globo de Ouro de Melhor Atriz.
Ao ingressar na faculdade de Direito de Heidelberg - instituição em que, curiosamente, Hannah Arendt se graduaria em Filosofia -, Berg acompanha como espectador ao julgamento de um grupo de oficiais mulheres da SS e descobre, chocado, que sua ex-amante era uma das acusadas. Durante as sessões do tribunal, em 1966, Hanna deixa claro em seu depoimento que a função de guarda da SS era apenas um meio de sobrevivência, e que "ela cumpria ordens". Não aparentava estar totalmente ciente das dimensões do Holocausto, demonstrando ser "apenas" uma peça na engrenagem, na organização e triagem das presas que rumariam para os campos de concentração - e com um drama pessoal que, se revelado, poderia modificar sua sentença. Em tempo: a história do julgamento de Eichmann também chegou às telas, em filme de 2007 dirigido por Robert Young.

Algumas Ideias de Hannah Arendt (trechos selecionados)
"Uma das importantes diferenças entre movimento e Estado totalitários é que o ditador totalitário pode e necessita praticar a arte totalitária de mentir com maior consistência e em maior escala que o líder do movimento. Isso é, em parte, consequência au tomática da ampliação dos escalões de simpatizantes e, em parte, resultado do fato de que uma declaração desagradável, vinda de um estadista, não é tão fácil de revogar quanto a de um demagógico líder partidário."
(De Origens do totalitarismo, Companhia da s Letras)


Franz Kafka
Ficcionista checo, Franz Kafka (1883-1924) é um dos principais nomes da literatura ocidental no século 20. Formado em Direito, chegou a trabalhar como advogado. Devido a sua morte prematura, várias de suas obras foram publicadas postumamente. A literatura kafkiana em geral apresenta protagonistas atormentados, oprimidos por um mundo burocrático e impessoal. Autor de Carta a meu pai (1919), O processo (1925) e O castelo (1926), seu romance mais conhecido é A metamorfose (1915), sobre um homem que acorda transformado em inseto.
Ao escrever o romance que gerou o longametragem de Daldry, Schlink provavelmente conhecia o ponto de vista desafiador e instigante de Hannah Arendt. À época da publicação de Eichmann em Jerusalem, as ideias de Arendt atraíram críticas iradas dos militantes de organizações judaicas. Estes, além de considerar falsas suas conclusões, rejeitariam a insinuação da cumplicidade no extermínio. Na verdade, a autora somente salientara a complexidade da natureza humana e uma certa "banalidade do mal", que surge à medida que se encara com naturalidade aberrações como a tortura, o sofrimento e a prática do mal. Assim, Arendt conclui que apenas o exercício de uma constante vigilância pode assegurar a preservação e a defesa da liberdade.
Sentido de Identidade e Pertencimento
Publicado naquele ano de 1963, Sobre a revolução representa talvez a contribuição máxima de Arendt ao pensamento liberal contemporâneo. Nesse trabalho, a autora estabelece uma série de comparações entre as revoluções da França e dos Estados Unidos, analisando seus aspectos comuns e as principais diferenças entre aqueles dois movimentos de ruptura da ordem pré-existente. Propõe ainda, como condição indispensável à manutenção da liberdade, que as instituições pós-revolucionárias introjetem e preservem vivos os ideais revolucionários.
Nesse ponto, advertiu seus concidadãos estadunidenses - ela radicou-se nos EUA em 1951 - que não se afastassem da ideologia que motivou sua revolução, sob risco de perderem dois componentes básicos da cidadania: o sentido de pertencer a uma nação e a própria identidade.

Algumas Ideias de Hannah Arendt (trechos selecionados)
"Há alguns anos, em um relato sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, mencionei a 'banalidade do mal '. Por mais monstruosos que fossem os atos, o agente não era nem monstruoso nem demoníaco; a única característica específica que se podia detectar em seu passado, bem como em seu comportamento durante o julgamento e o inquérito policial que o precedeu , afigurava -se como algo totalmente negativo: não se tratava de es tupidez, mas de uma curiosa e bastante autêntica incapacidade de pensar."
(De uma conferência em 1970)

Ressalte-se que, apesar de sua origem hebraica, Hannah não foi educada segundo os costumes tradicionais da religião judaica e, dessa forma, sempre teve a oportunidade de expressar livremente sua fé, ainda que contrariando as convenções. Trata-se de um aspecto importante à interpretação de sua obra, até porque praticamente a vida toda de Hannah foi devotada ao objetivo principal de tentar compreender o destino do povo judeu perseguido pelo regime hitlerista de que ela própria foi vítima, presa pela Gestapo e expulsa da Alemanha. Vale lembrar que, para Hannah Arendt, "compreender" a realidade queria dizer encará-la de uma forma não preconceituosa e resistir a ela, sem buscar apenas explicações em antecedentes históricos.
Autêntica teórica do inconformismo, Arendt defendeu os direitos individuais e a família, contra as "sociedades de massas" e os crimes contra a pessoa; pregou ainda a desobediência civil, os direitos dos trabalhadores e posicionou-se contra a guerra do Vietnã.

Vida Pessoal e Legado
William Shawn
(1907-1992) foi um jornalista estadunidense nascido em Chicago com o sobrenome Chon, cuja grafia mais tarde modificou. Editor da revista The New Yorker por 35 anos, de 1952 a 1987, período durante o qual editou reportagens clássicas como as de John Hershey ou Truman Capote, além das de Hannah Arendt. Em 1988, recebeu o Prêmio George Polk. Sua vida foi retratada na biografia A arte invisível da edição, escrita por Ved Mehta.
Hannah Arendt teve uma vida amorosa movimentada: foi amante de Heidegger, que era bem mais velho, casado e não pretendia deixar a esposa. A pensadora casou-se duas vezes (com Günther Stern, que também usava o sobrenome Anders; e com o filósofo Heinrich Blücher) e despertou paixões arrebatadoras tanto em homens quanto em mulheres. Ela sempre resistiu ao assédio de Hermann Broch (escritor austríaco) e de W. H. Auden (poeta inglês que, embora homossexual, declarou amá-la). Manteve também um relacionamento íntimo com Hilde Fränkel, que era companheira do filósofo Paul Tillich, com o conhecimento de seu segundo marido.
A biógrafa Laure Adler, que escreveu Nos passos de Hannah Arendt, menciona alguns dos defeitos de Arendt: ela, às vezes, omitia a real importância de contribuições de outras pessoas na formulação de suas ideias; raramente admitia os próprios erros; nunca reconhecia de forma adequada o valor intelectual de seu primeiro marido, Günther Stern, que foi um dos primeiros teóricos a estudar a literatura do escritor a Franz Kafka - autor de alguns dos clássicos livros do século 20, como A Metamorfose e O Processo. Os dados apresentados por Adler são importantes para não dar a este perfil um caráter hagiográfico, pois Arendt foi uma pensadora extraordinária, porém, humanamente contraditória.
Ainda sob o ponto de vista pessoal, Hannah valorizava muito a verdadeira e duradoura amizade. Um de seus grandes amigos foi o professor Karl Jaspers, orientador de sua tese de doutorado sobre O conceito de amor em Santo Agostinho. Outra integrante desse grupo restrito foi Mary McCarthy, escritora estadunidense que manteve com ela intensa correspondência. McCarthy encarregou-se de organizar os escritos de Arendt após sua morte, em 1975, e de editar o último livro deixado pela filósofa, A vida do espírito.
Em um posfácio escrito naquele ano, o então editor da New Yorker, a William Shawn, sintetizou sua opinião sobre o legado intelectual de Hannah Arendt: "Com o passar dos anos, tornou-se claro que ela era um daqueles pensadores raros em toda a história, que são autorizados a avançar lentamente no pensamento humano, que podem acrescentar algo ao conhecimento do homem e à compreensão de si mesmo, que podem empurrar os limites de onde a mente pode ir. Suas ideias, tão originais como eram, tinham a normalidade e a inevitabilidade de verdades que apenas esperavam para ser descobertas em algum lugar".
REFERÊNCIAS
ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Tradução de Tatiana Salem Levy e Marcelo Jacques. Rio de Janeiro: Record, 2007.
LAFER, Celso. Hannah Arendt - Pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1997.
 Texto retirado da Revista Filosofia: Conhecimento Prático - Editora Escala

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Astronomia: uma viagem filosófica e científica


A filosofia e a astronomia são campos de saber que possuem uma origem comum e buscam responder a questões fundamentais para a humanidade. 
por Maysa Rodrigues*



EmiIio Segre
Edwin Hubble
Formado em Direito, mas com uma inquietação científica, Edwin Power Hubble (1889-1953) foi um astrônomo norte-americano, famoso por sua descoberta de uma camada nebulosa, depois considerada uma galáxia fora da Via Lactea. Em 1990, um telescópio espacial foi colocado em órbita e recebeu o nome de Hubble.

Aristóteles, filósofo da Antiguidade e pupilo de Platão, contemplou o firmamento e, ao lado de outros pensadores gregos, deu passos importantes em direção à Astronomia Moderna. Trezentos anos antes de Cristo, em uma época em que a Filosofia e a Ciência ainda falavam a mesma língua, ele se intrigou profundamente pela existência de corpos brilhantes que se moviam no céu noturno. Séculos mais tarde, seus sucessores, como Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Isaac Newton, olharam para as mesmas estrelas e construíram um novo campo de saber destinado a estudar os fenômenos celestes. No século 20, físicos e astrônomos, dentre eles Albert Einstein e Edwin Hubble , teorizaram sobre a origem de todas as coisas - desde partículas subatômicas até planetas, estrelas, galáxias e seres humanos. Não por acaso, tentaram responder a três das questões filosóficas mais fundamentais: de onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?

Assim, muito além da origem comum, a Filosofia e a Astronomia se movem pela mesma inquietação da busca pela compreensão do mundo à nossa volta. Nesta reportagem, apresentaremos as relações entre esses dois fascinantes campos do saber que encantam a humanidade desde seus primórdios.

Os filósofos cientistas
Estritamente, a nossa história começa na primeira vez em que o homem primitivo olhou para o céu e tentou compreender o que aquilo significava. Mas o nosso ponto de partida será a Antiguidade Clássica, considerada o embrião da civilização ocidental e de toda a sua Filosofia e Ciência.

ZeIchner/Museu CapItolInI, Roma
Pitágoras 
O matemático e filósofo grego Pitágoras de Samos (570-71 a.C - 496-97 a.C) é conhecido pelo Teorema de Pitágoras. Teve influência notória no pensamento ocidental também nos campos da Metafísica e da Astronomia. A base de sua filosofia - e de sua escola filosófica, o pitagorismo - são os números e os cálculos.
No mundo grego, o conhecimento ainda não era segmentado como hoje e algumas das disciplinas atuais - como a Matemática, a Física, a Biologia e a Química - faziam parte de um mesmo campo do saber, denominado filosofia da natureza. "Ao voltarmos para a Grécia Antiga, no século 6 a.C., vemos que existiam os chamados filósofos cientistas, como Tales, Anaximandro e Pitágoras . Nesse momento, eles faziam ao mesmo tempo filosofia e uma ciência nascente", afirma o filósofo da ciência e professor da Universidade de São Paulo (USP) Osvaldo Pessoa Jr. Nesse contexto, o conhecimento astronômico produzido pelos gregos antigos era uma mistura de observação, racionalismo e crença.

Considerado um dos primeiros filósofos da natureza, Pitágoras nasceu por volta de 582 a.C., e ficou especialmente conhecido pelos seus teoremas matemáticos. No campo da Astronomia, propôs a então revolucionária ideia de que a Terra era redonda e suspensa no espaço. Ademais, sugeriu que o nosso planeta não estava parado; permanecia em um movimento circular constante ao redor de uma espécie de chama central, a qual nomeou de Héstia. Para Pitágoras, todos os outros planetas também giravam em torno dessa chama, inclusive o Sol que, em sua visão, não era o responsável por iluminar a Terra, pois também era iluminado por Héstia e apenas refletia a luz recebida por ela.
O modelo cosmológico de Aristóteles
Quase duzentos anos mais tarde, Aristóteles superou a ideia da existência da Héstia e se tornou uma peça fundamental na história da Astronomia. O filósofo nascido em 384 a.C. foi discípulo de Platão e professor do herdeiro macedônio Alexandre, o Grande. Seu campo de estudo foi bastante vasto; dedicou-se, dentre outros temas, à retórica, à poética, à biologia, à lógica e à política. No que diz respeito ao estudo da Astronomia, Aristóteles propôs um modelo cosmológico em que existiriam inúmeras esferas, uma dentro da outra. A esfera central ia desde o centro da Terra até uma região próxima à Lua e compreendia toda a existência possível, fazendo parte dela todas as formas de vida, assim como o próprio tempo - seja ele passado, presente ou futuro. Nesse mundo, as coisas mais pesadas tenderiam ao centro, de modo que o elemento terra se concentraria na parte de baixo, coberto por água - que, por sua vez, seria o elemento que comporia a próxima esfera. Em seguida, haveria outra esfera constituída de ar e a última de fogo. Após essa última região, estaria localizada a esfera celestial, na qual todas as estrelas que enxergamos estariam fixadas imovelmente em um plano responsável por todo o movimento que vemos em nosso planeta. Diferentemente da terra e da água, o fogo e o ar tenderiam para cima, porém poderia haver certa mistura entre os quatro elementos de forma que todos os objetos existentes no planeta seriam constituídos por eles, em diferentes proporções.
A conclusão de Aristóteles sobre a fixação das estrelas em um plano se baseava no fato de que, apesar de se movimentarem pelo céu noturno, elas sempre mantinham a mesma posição em relação umas as outras. Essa constatação seria tomada pelo filósofo como evidência de que havia uma lei que governava os astros a partir de um movimento perfeito. Porém, havia sete pequenos desvios que faziam parte da lei aristotélica: tratava- se de algumas estrelas maiores - Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, além da Lua e do Sol - que pareciam descrever um movimento irregular no entorno da Terra. A partir dessa verificação, esses corpos foram classificados como uma classe à parte dentre as estrelas, recebendo o nome de "planetas". Os cinco planetas em questão foram batizados pelos gregos em homenagem aos deuses do Olímpio. Com o fim do Império Grego, esses nomes foram trocados pelos equivalentes na nomenclatura romana, que permanecem até hoje.

Alguns planetas parecem realizar órbitas retrógradas do ponto de vista da Terra. Porém, do ponto de vista do Sol, suas órbitas são elípticas.

Por muito tempo, a teoria de Aristóteles contentou os antigos. A ideia de que a Terra estava no centro do universo (Modelo Geocêntrico) era bastante razoável para qualquer um que observasse o firmamento: as estrelas cruzam o céu noturno, e o Sol se move na esfera celeste ao longo do dia. Essas duas observações dão a sensação de que a Terra está fixa, sendo o céu que se move sobre a nossa cabeça. Entretanto, a visão de planetas que não descreviam um círculo regular ao redor do nosso desafiou por mil anos a inteligência dos homens que continuaram acreditando no modelo geocêntrico e na lei do movimento perfeito de Aristóteles.

Gravura do século XVI / Domínio público
Ptolomeu 
Claudius (?) Ptolomeu teria nascido em 90 a.C. em uma região do Egito pertencente aos romanos. Pouco se sabe a seu respeito, mas ele foi um dos maiores defensores do sistema geocêntrico de sua época. Sua contribuição para a geometria e para a geografia teria sido muito maior, mas vários de seus estudos desapareceram.
Apesar das dificuldades encontradas em adaptar a teoria às observações, os gregos ainda não estavam prontos para abandoná-la. Por isso, alguns pensadores trabalharam em modelos que propunham complexas órbitas concêntricas para justificar a compatibilidade do movimento retrógrado de alguns planetas com o geocentrismo. Como será apresentado mais adiante, apenas no século 15 Copérnico propôs o modelo heliocêntrico. Nascido entre os dois primeiros séculos depois de Cristo, Ptolomeu estava ciente de alguns problemas com o geocentrismo, mas ainda assim reiterou esse modelo. Calculou com uma exatidão satisfatória a trajetória dos planetas em volta da Terra e, contrariando as esferas perfeitas de Aristóteles, afirmou que descreviam órbitas complexas, com ciclos, epiciclos e equantes. Essa geometria exótica foi usada para justificar alguns momentos em que o sentido do movimento dos planetas parecia se inverter do ponto de vista da Terra, o que era explicado pelo modelo das esferas concêntricas, mas sem muita precisão. Apesar de equivocado, o modelo de Ptolomeu funcionava com perfeição, prevendo com bastante segurança o comportamento dos planetas.
Depois de Ptolomeu, segundo atesta a his tó ria da Astronomia, este campo teria ficado relativamente estagnado por séculos. Muito da tradição grega teria se mantido viva durante o Império Romano, porém o advento do feudalismo, a partir da queda de Roma em 476 d.C., significou fragmentação política e cultural.

Havia sete pequenos desvios que faziam parte da lei aristotélica: tratava-se de algumas estrelas maiores - Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, além da Lua e do Sol

Domínio público
Nicolau Copérnico 
"A Terra se move em torno do Sol". Com esta constatação, o cientista e astrônomo Nicolau Copérnico (1473-1543) entrou para a história da ciência moderna. Nascido na Polônia, seu nome pode ser "traduzido" também para Nicolaus Copernicus ou Mikolaj Kopernik.
Os primeiros astrônomos

O próximo grande passo em direção ao conhecimento astronômico foi dado por Nicolau Copérnico . Nascido em 1473, esse pensador examinou minuciosamente as construções de Ptolomeu e, inspirado em ideias do grego Aristarco, verificou que se trocasse a Terra pelo Sol do centro do cosmos, tornaria os cálculos muito mais harmoniosos e poderia simplificar o modelo ptolomaico. A partir dessa mudança, ele percebeu que havia uma relação entre o tamanho da órbita de cada um dos planetas e sua duração em meses - ideia que foi desenvolvida posteriormente por Kepler e por Newton. Além disso, Copérnico estabeleceu que a Lua orbita a Terra e que o nosso planeta gira em torno de si mesmo a cada 24 horas - o que explica o porquê de as estrelas parecerem mudar de lugar durante a noite, causando a ilusão de que nós estamos parados. Todos esses ingredientes do revolucionário modelo heliocêntrico foram apresentados na obra Da Revolução das Órbitas Celestiais, publicada no ano de 1543, no mesmo ano em que Copérnico morreu. Não é de se espantar que o livro tenha causado um verdadeiro furor, já que a cultura da época era amplamente dominada pelos valores católicos, nos quais a centralidade da Terra era um reflexo da criação divina.

Em uma perspectiva ampliada, o heliocentrismo de Copérnico distingue-se dos modelos cosmológicos gregos - que em certa medida se aproximam da acepção cristã - porque começa a romper com a crença em uma verdade divina e inata que deveria orientar o homem na compreensão do universo. O movimento perfeito da órbita dos planetas de Aristóteles e o modelo geocêntrico são expressões dessa tendência, que começa a ser desfeita. "Copérnico tem uma posição de transição entre a Filosofia e a Física. Por um lado, propõe o modelo heliocêntrico, mas, por outro, ainda está muito próximo a Ptolomeu no uso de técnicas e de instrumentos matemáticos", explica Osvaldo Pessoa Jr.
Apesar de postulado por Copérnico, o legado do heliocentrismo foi instituído somente mais tarde, a partir de uma mudança de paradigma que faz parte da origem da Ciência. Tycho Brahe foi um nome importante nesse processo, sendo considerado o maior observador estelar anterior à era do telescópio. Ele registrou a posição do Sol, da Lua e dos planetas conhecidos por quase vinte anos, chegando à conclusão de que suas disposições divergiam daquelas defendidas pela teoria da época, que ainda seguia o modelo de Ptolomeu. Além disso, seu trabalho foi fundamental para que o seu assistente Johannes Kepler elaborasse novas leis empíricas sobre os movimentos dos planetas.
Kepler, por sua vez, estabeleceu que, empiricamente, os dados sobre as órbitas dos planetas não correspondiam ao requinte filosófico dos círculos perfeitos, conforme defendeu Copérnico e seus antecessores. Na verdade, os planetas descreviam uma elipse, ou seja, uma espécie de círculo com dois focos, sendo que o Sol ocupava um desses centros. Outra descoberta fundamental de Kepler foi a de que a velocidade com que os planetas orbitavam o Sol não era constante; conforme se aproximavam da estrela, tornavam-se mais rápidos e conforme se afastavam, ficavam mais lentos. O pensador também estabeleceu a relação matemática, já suposta por Copérnico, entre o tamanho da órbita de um planeta e o tempo para percorrê-la. Dessa maneira, Kepler ganhou seu lugar ao sol no mundo da Astronomia ao descrever com poucos erros os movimentos dos integrantes do sistema solar. Entretanto, seus avanços deixaram uma indagação sem resposta: o que fazia com que os planetas se movimentassem de tal forma?

Domínio público
Tycho Brahe 
Astrônomo de origem dinamarquesa, Tycho Brahe (1546-1601) é tido como um dos pensadores da ciência moderna. Grande observador, deixou um legado que permitiria a Kepler desenvolver parte de sua teoria sobre a movimentação dos planetas.
Quase cem anos mais tarde, essa questão recebeu uma resposta convincente com as famosas três leis de Isaac Newton. Mas, antes disso, Galileu Galilei (1564) forneceu uma nova e fantástica visão do céu. Até então, tudo o que era possível de se enxergar a olho nu já tinha sido visto. Porém, Galileu ampliou em trinta vezes esse panorama ao aperfeiçoar o telescópio, que ainda era muito rudimentar na época. Com isso, um novo e expandido universo surgiu para ser contemplado. O pensador viu pela primeira vez na história as inúmeras crateras lunares, os satélites em volta de Júpiter, as manchas solares e os anéis em volta de Saturno. Mas seu feito mais importante foi a descoberta de que Vênus apresentava fases, assim como as da Lua. Essa era uma prova irrefutável do heliocentrismo de Copérnico, como se poder observar na figura. Da mesma maneira, a verificação de que havia pequenas luas que orbitavam Júpiter também evidenciava que a Terra não era o centro do universo e que o nosso satélite era diferente dos outros planetas. Todas essas descobertas foram publicadas no livro O Mensageiro das Estrelas e renderam para Galileu uma condenação à prisão domiciliar, além da obrigação de se retratar.
Isaac Newton nasceu em 1642 e tornou-se o principal responsável pelo surgimento da Física como conhecemos. Sua principal contribuição para o entendimento da natureza foi unificar a lógica do movimento dos corpos na Terra com o movimento dos corpos no espaço. Em sua época, a ideia da existência de uma força que fazia com que os corpos fossem atraídos para baixo já era conhecida. O próprio Galileu já havia realizado estudos nesse sentido, mas a grande descoberta de Newton foi perceber que o mecanismo que fazia com que os objetos caíssem na Terra era exatamente o mesmo que era responsável pela órbita dos planetas em torno do Sol e dos satélites em torno dos planetas.
A partir disso, ele formulou uma teoria sobre a gravitação universal; gravidade seria uma força que, mesmo a distância, atrai os objetos mutuamente. Suas três leis da mecânica eram aplicáveis a tudo o que havia na natureza, ou pelo menos foi o que se acreditou por um longo período de tempo. Seus cálculos davam conta de esclarecer a razão da existência das marés, elucidar a velocidade dos planetas e até mesmo explicar por que os astros são redondos. Com sua teoria da gravitação universal, o cientista inglês unificou a física da Terra e dos céus, contribuindo de forma definitiva pelo estabelecimento de um paradigma que, ainda que com ressalvas, perdura até os dias atuais.

Os planetas descreviam uma elipse, ou seja, uma espécie de círculo com dois focos, sendo que o Sol ocupava um desses centros
Ciência x Filosofia
O período entre o intermediário Copérnico e o físico Newton abarca peças fundamentais do quebra-cabeça da Física e da Astronomia modernas. Por um lado, esse novo tipo de pensador se preocupava com os mesmos objetos que os filósofos cientistas da Antiguidade - além de tomar os antecessores gregos como ponto de partida de suas discussões -, porém, seus enfoques e seus modos de trabalho começam a se distanciar bruscamente dos da Filosofia. "A separação entre Filosofia e Ciência foi algo gradual, mas é possível dizer que, apesar de os filósofos cientistas já fazerem uma ciência embrionária, historicamente a ciência madura começa no século 17, a partir de Kepler, Galileu e Newton - na Física - e de Harvey - na Biologia.", afirma Osvaldo Pessoa Jr. Segundo o professor, antes disso a filosofia da natureza se caracterizava por muita especulação teórica e pouca experimentação.




Assim como a Lua, por orbitar o Sol, o planeta Vênus é apenas parcialmente iluminado em alguns pontos de sua trajetória Do ponto de vista da Terra, isso significa percebermos fases, como as lunares.
Um primeiro passo em direção à Ciência teria sido dado na própria Antiguidade, pelos chamados filósofos pré-socráticos e pelos sofistas, que direcionaram a Filosofia para as questões da moral e da ética, deixando as perguntas sobre a natureza em um campo à parte. Porém, teria sido no século 17 que o surgimento de instrumentos mais precisos (tanto em termos de constructos matemáticos, como de objetos concretos) teria engendrado o aparecimento de especialistas para operá-los e de uma vocação mais técnica que caracteriza a Ciência. "A Ciência surgiu a partir de três elementos fundamentais: a especulação teórica e a experimentação, características do método científico, e o reconhecimento social que a legitima". Ademais, a questão que traça uma linha divisória entre a Ciência e a Filosofia é que a primeira se preocupa com problemas pontuais, que são passiveis de investigação experimental, enquanto a Filosofia se debruça sobre questões que não têm necessariamente uma resposta. "Um filósofo pode se perguntar, por exemplo, se os fenômenos do universo têm uma causa ou se são simplesmente aleatórios, ou então por que o tempo anda só para a frente. Sobre essas mesmas questões, um físico se indagaria se elas têm consequências práticas inseridas nos problemas científicos e se é possível realizar um experimento para compreendê- las. Se as respostas forem não, esses temas não interessarão ao cientista", diz o professor.
Apesar dessas diferenças, a busca pela compreensão daquilo que existe - com menor ou maior orientação empírica e com uma vocação mais geral ou mais técnica - aproximam a Filosofia e a Ciência. Além disso, a Física, a Astronomia e a a Cosmologia - mais do que outras ciências - têm uma preocupação mais genérica. "A Física, por exemplo, se pergunta se há uma lei universal e se existem partículas básicas que formam todas as coisas. Nesse sentido, é mais próxima da filosofia, que também faz questões sobre o todo, como o que é o ser, qual é o sentido da vida etc.", completa Pessoa Jr.

O universo em perspectiva filosófica
Se a Astronomia e a Física têm suas raízes nos filósofos da natureza, as teorias atuais sobre o universo em sua totalidade possuem um viés bastante filosófico. A Cosmologia é um ramo da Astronomia que reúne teorias sobre a origem, o funcionamento e o futuro do universo, a partir de uma mistura entre matemática avançada, conhecimentos da astrofísica, informações empíricas e imaginação filosófica.

Desde que foi estabelecida a existência de inúmeras galáxias para além da Via Láctea, os astrônomos começaram a se perguntar de onde teriam surgido todos esses universos repletos de estrelas dos mais diferentes tipos, com uma vastidão de planetas, satélites, poeira e outros corpos celestes ainda mais exóticos, como buracos negros, quasares e cefeidas.
Até a década de 1920, era bastante aceita a teo ria que postulava um universo finito, estático e eterno. Porém, essa ideia começou a cair por terra a partir das contradições que se acumulavam com a teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein (1879) e com as novas observações coletadas especialmente por Edwin Hubble (1889).
Apesar de Einstein ser partidário da ideia de um universo estático, sua teoria da Relatividade Geral sugeria uma geometria para o universo que seria incompatível com essa noção, apontando para um momento inicial da formação do cosmos. O físico repensou a teoria da Gravitação Universal de Newton, descartando o postulado de uma força atrativa e apresentando a ideia de que o que existe é um tecido constituído de espaço e tempo, simultaneamente, que se curva na presença de matéria. Dessa forma, o efeito da gravidade seria, na realidade, a deformação desse tecido. A partir disso, se o universo fosse realmente estático, toda a massa existente seria agrupada em um mesmo ponto, uma vez que a deformação no espaço-tempo levaria a isso - o que não ocorre de fato. Além disso, Einstein também postulou que o universo é homogêneo e isotrópico, de forma que em grandes escalas tudo deveria ser igual - ideia que foi desenvolvida e que atualmente possui indícios empíricos de sua validade.

Cosmologia 
Cosmologia é um campo do conhecimento que mistura Física, Astronomia, Matemática e Filosofia para formular teorias sobre a origem, o futuro e o funcionamento do universo.
Se a Relatividade Geral de Einstein conferiu a base teórica sobre a qual uma teoria do surgimento do universo poderia emergir, Hubble ofereceu um elemento contundente em termos observacionais. O astrônomo trabalhava com a obtenção de imagens de galáxias distantes (na verdade, com espectros, ou seja, imagens em comprimentos de ondas diferentes da luz visível) e, em 1929, graças a um fenômeno ondulatório conhecido como efeito Doppler, descobriu que elas estavam se afastando de nós e também umas das outras. Isso indicava que o universo de fato está em expansão e, a partir disso, implica que um dia foi muito menor. Mais tarde, foi descoberto que essa expansão se relacionava com a expansão do espaço-tempo prevista na teoria de Einstein.
Essa constatação nos leva por volta de 14 bilhões de anos atrás, em um momento em que o cosmos estava em sua contração máxima, retraído em um ponto inicial - que os físicos chamam de singularidade, pois a palavra ponto transmite uma noção de espaço e o próprio espaço não existia nesse momento - a partir do qual tudo o que conhecemos, desde galáxias, estrelas, planetas e pessoas, além do próprio espaço e tempo, originou-se. Esse ovo primordial, extremamente quente e denso, iniciou sua expansão em um evento que ficou conhecido como Big Bang. "No início toda a estrutura do Universo como a conhecemos hoje era completamente distinta. As temperaturas eram elevadíssimas e toda a matéria conhecida por nós era diferente. As interações eram de tal energia que os átomos e núcleos que conhecemos não poderiam existir", explica o astrofísico e professor da Universidade de São Paulo Ronaldo E. de Souza.
Nos momentos que sucederam o Big Bang, houve uma gigantesca expansão em um período muito pequeno de tempo. Essa expansão ocorreu em uma velocidade muito superior a tudo que conhecemos, fazendo com que o universo mantivesse sua homogeneidade até os dias atuais. Após esse período que ficou conhecido como Inflação Cósmica, outros eventos ocorreram. "Logo após o Big Bang, as quatro forças que conhecemos atualmente na natureza - a gravitação, a força eletromagnética, a força nuclear fraca e a força nuclear forte - estavam reunidas em uma única interação unificadora. Ainda não existe um modelo teórico que descreva acuradamente essa situação, mas existem bons motivos para se acreditar que com a expansão inicial as temperaturas caíram dramaticamente e gradualmente; as quatro forças, antes unificadas, começaram a se separar", explica o astrofísico.
Com a separação dessas forças, por volta de cem segundos depois da grande explosão, os núcleos dos átomos puderam ser formados. Constituídos de prótons e nêutrons (e estes, por sua vez, constituídos de quarks), os núcleos se tornaram permanentemente coesos, uma vez unidos pela força nuclear. "Nessa fase ocorreu a nucleossíntese primordial em que o universo se comportou como um gigantesco reator termonuclear, favorecendo a transformação dos prótons e nêutrons originais em átomos leves de deutério, hélio e lítio", completa o professor.
Um bilhão de anos depois da grande explosão ocorre a formação das primeiras estrelas e também surgem novos elementos químicos, como o nitrogênio, o oxigênio e o carbono. Bilhões de anos mais tarde, quando o calor e a pressão em seu núcleo se tornam suficientes, essas novas estrelas iniciam o processo de fusão nuclear, no qual fundem dois átomos de hidrogênio, criando um átomo de hélio e liberando uma incrível quantidade de energia. Além da transformação do hidrogênio, as estrelas também podem sintetizar elementos mais pesados, criando outros novos elementos. Com esse mesmo processo são criados todos os elementos químicos que conhecemos. Finalmente, algum tempo depois, os planetas - assim como a Terra - puderam se formar ao redor das estrelas, a partir de um disco de gás e poeira que as circunda.

Domínio público
Georges Lamaître 
Georges-Henri Lamaître (1894-1966) foi um físico, astrônomo e padre nascido na cidade de Charleroi, na Bélgica. Estudou Matemática e Ciência na Universidade de Louvain e tem como legado a defesa da Teoria do Big Bang.
A Cosmologia propõe uma visão panorâmica do universo em que as estrelas se agrupam, formando as galáxias, e estas também se reúnem em grupos cada vez maiores, dando origem aos filamentos, que são as grandes estruturas do universo. A teoria da evolução cósmica, conforme apresentada, agrega elaborações de uma grande diversidade de cientistas. A ideia de um ovo primordial que teria dado origem a tudo que conhecemos foi apresentada pela primeira vez em 1931 pelo padre e astrônomo Georges Lamaître(1894). Da mesma maneira, as teorias de Einstein e as investigações de Hubble, assim como inúmeras outras contribuições, foram essenciais no desenvolvimento desse paradigma.
Apesar de haver teorias concorrentes, a formulação do Big Bang é a resposta mais aceita entre os físicos para a origem do universo. "A motivação é que o modelo é o mais simples e preditivo que conhecemos. Portanto, parece mais sensato exaurir primeiro essa possibilidade antes de adotar soluções potencialmente mais gerais, mas também muito mais complexas", explica o professor.

De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?
Viemos de um ovo primordial cuja expansão deu origem a tudo o que há. Dos átomos às estrelas, destas aos planetas e destes ao surgimento da vida como conhecemos há um longo caminho que a Física, a Química e a Biologia alegam ter remontado - pelo menos em parte. Ainda assim, inúmeras perguntas se mantêm. Havia algo antes desse ponto de origem? "Segundo a Teoria da Relatividade Geral, o espaço e o tempo surgiram com o Big Bang e, portanto, não faria sentido pensar em um momento anterior a esse evento", responde Ronaldo E. de Souza. Mesmo com o esclarecimento de Einstein, é difícil para a mente humana conceber a inexistência do espaço e do tempo, o que abre caminho para inúmeras outras dúvidas.

Somos os produtos de uma expansão cósmica. Os átomos que formam nosso corpo foram criados há muitos bilhões de anos, sintetizados nos núcleos de estrelas monumentais e recombinados extraordinariamente de maneira a constituírem a vida. Somos o resultado da maior de todas as jornadas e milagrosamente temos a capacidade de fazer perguntas sobre ela. Ainda assim, a imensidão do universo dilui nossas poucas respostas entre tantas indagações.
E para onde vamos? Até agora os cientistas têm duas apostas principais. Ou o universo continuará em eterna expansão, até que o calor de todas as estrelas se acabe e o cosmos termine no mais absoluto frio e na escuridão ou, em um determinado momento, a expansão se acabará. Nessa possibilidade, o universo começaria a se contrair, ficando cada vez mais quente e denso outra vez. "Mesmo havendo incertezas, os resultados mais recentes do satélite WMAP indicam que o modelo de universo plano seria o correto. Uma consequência natural disso é que a expansão do universo deve prosseguir indefinidamente", esclarece o astrofísico.
De qualquer forma, rumo à expansão eterna ou fadado à contração, o universo continuará sendo objeto dos maiores questionamentos da humanidade. Se a filosofia antiga e a ciência contemporânea operam dentro de lógicas diferentes, ironicamente o que nos separa dos gregos não é a quantidade de perguntas respondidas, mas sim a multiplicação vertiginosa das indagações que se acumulam a partir de cada novo conhecimento alcançado.

Nasa/Wmap science team
Ilustração dos eventos que ocorreram desde o Big Bang

Texto Retirado da Revista Filosofia: Conhecimento Prático - Editora Escala


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Maquiavel, a virtù e a garantia da liberdade


Em sua obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Maquiavel influência o debate sobre o conceito de liberdade, e deixa uma questão contemporânea em aberto: como estimular a virtude cívica nos cidadãos de uma sociedade política, dado que tal virtude é pressuposto de realização da liberdade?
por Ester Gammardella Rizzi*

Nicolau Maquiavel (1469-1527), italiano de Florença, viveu durante um período conturbado da história europeia, principalmente de Roma – centro do poder italiano devido ao domínio da Igreja Católica sobre a sociedade. Nessa época, famílias, governantes, e até mesmo o papado e outros membros da Igreja, se envolviam cada vez mais em rixas por poder e dominação.

Nicolau Maquiavel (Niccolò Machiavelli, 1469-1527), autor renascentista italiano conhecido principalmente por sua obra O Príncipe (de 1513, publicado em 1532), servia à ano início do século 16. Participava ativamente e observava de perto as instituições de um poder em funcionamento. Depois de aproximadamente 14 anos de trabalho, foi afastado de suas funções públicas sob a acusação de ser um dos responsáveis pela política contrária ao governo a . Entre 1514 e 1517, afastado do exercício político, escreveu seus Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, cujo objetivo era comparar as instituições da Roma clássica com as de Florença do período. Como surgem os estados, como se mantêm e como se extinguem são os movimentos analisados nesse trabalho, que influencia até hoje as discussões sobre a virtude cívica e a garantia da liberdade.

Cidade-estado fundada em 1115 e dissolvida em 1532, a República Florentina, ou República de Florença, era governada pela Signoria, cuja cúpula era formada por nove integrantes, escolhidos entre comerciantes e artesãos e figuras destacadas de uma sociedade composta por oligarquias. Em 1429, iniciou-se o período da dinastia dos Médici – Cosme (Cosimo) de Médici (1389- 1464) à frente, seguido de outros nomes importantes como Lourenço de Médici (1449-1492). A região de Florença vivia, então, um período de esplendor intelectual e artístico.


Tendo como membros banqueiros, governantes, grão-duques e papas, a Família Médici foi uma poderosa dinastia política presente na região da Itália. Os Médici comandaram Florença e Toscana por décadas e foram financiadores de artistas, poetas, filósofos e cientistas do Renascimento. Entre aqueles que, em algum momento se beneficiaram desse mecenato, figuram Galileu Galilei, Michelangelo e Leonardo da Vinci.
A liberdade tem sido considerada um valor a ser realizado pelas sociedades políticas nas obras de diversos autores da filosofia política moderna. Thomas Hobbes, a, Jean-Jacques Rousseau e o próprio Maquiavel – entre tantos outros que trazem e atualizam o debate e a tentativa de conceituação até a contemporaneidade –, tentaram definir liberdade, tratar seus limites e as implicações de sua realização.

Se na obra O Príncipe Maquiavel parecia privilegiar, entre os bens a serem realizados por uma ordem política, a conservação e a segurança, o valor eleito pelo autor nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio parece ser a preservação da liberdade na cidade de Roma, seu modelo de organização política.

Surpreendentemente, são tumultos e conflitos entre plebe e nobres que poderiam levar à realização da liberdade na cidade: estariam na origem de boas leis. Não é, porém, para Maquiavel, qualquer tumulto capaz de gerar boas leis, mas sim os conflitos canalizados para as instituições que consigam dar vazão a esses humores sociais. A existência de formas institucionais capazes de mediar os conflitos e, ao fazê-lo, conseguir transformá-los em efetiva participação na vida pública é, assim, essencial. Sem instituições que acolham e promovam uma solução pública para os conflitos, estes podem se transformar em disputas privadas que em tudo são contrárias à virtù, que Maquiavel visa a promover.

Cidades populares x cidades aristocráticas
O povo é, ou deveria ser, o guardião da liberdade, já que é ele quem age contra uma opressão ou contra o receio de ser oprimido. Entre  e , cidades aristocráticas, e Roma, exemplo de cidade popular, que conta com a participação do povo para realização de seus projetos públicos, Maquiavel deixa evidente ao longo do livro sua predileção pelo modelo romano.
Maquiavel nos oferece duas relevantes razões de sua defesa e preferência pelas cidades populares quando comparadas às cidades aristocráticas, de porque ele acredita ser tão relevante a participação do povo na vida pública das cidades. O primeiro motivo é a importância da participação popular para a garantia de uma cidade militarmente forte e próspera. Uma população numerosa, armada, treinada para participar de guerras e defender sua cidade de seus inimigos externos é uma população que tem força para causar tumultos e reivindicar benefícios diante dos poderosos, ou seja, para atuar em seus conflitos internos.

O povo é, ou deveria ser, o guardião da liberdade, já que é ele quem age contra uma opressão ou contra o receio de ser oprimido. Entre Esparta e Veneza, cidades aristocráticas e Roma, exemplo de cidade popular, que conta com a participação do povo para realização de seus projetos públicos, Maquiavel deixa evidente ao longo do livro sua predileção pelo modelo romano.





QUEM FOI TITO LÍVIO 
Escritor, filósofo e historiador nascido por volta do ano 59 a.C., em Pádua, na região do Vêneto, Tito Lívio (Titus Livius) escreveu Ad Urbe Condita (tradução aproximada:Desde a fundação da cidade), obra monumental que reconstitui a trajetória de Roma desde a sua formação. Embora tenha se mantido afastado dos grupos literários de seu tempo, foi contemporâneo de Virgílio, Ovídio e Horácio. Tito Lívio morreu também em Pádua, no ano 17 d.C.
Outra razão, ainda mais importante, para que se estimule a participação do povo na vida pública, segundo Maquiavel, é a necessidade de confiar a ele a preservação da liberdade, já que, sendo ele o objeto privilegiado da dominação, é também o sujeito mais capaz de prevenir que ela aconteça. Ressalta o protagonismo dos muitos diante dos poucos. Algumas características devem estar presentes para que o povo funcione efetivamente como guardião: a instância última de julgamento de uma cidade, ao menos em relação à violação ou não de sua liberdade, deve ser o próprio povo, e não algum magistrado investido de poderes pessoais. Os juízes devem ser muitos nesses casos, pois os poucos tendem sempre a julgar em favor dos poucos.
Parece claro, assim, que se há uma tensão entre senado e plebe, entre muitos e poucos, entre um só e muitos no exercício do poder, tal como descrito na obra de Maquiavel, há, pelo menos em relação à preservação da liberdade, um verdadeiro protagonismo do povo em sua guarda e realização. Não há cidade forte militarmente sem povo, mas também não há cidade livre sem participação dos muitos na vida política da cidade, defendendo sua própria liberdade contra os poucos, que teriam a possibilidade de suprimi-la.

Nascido em Wrington, Inglaterra, John Locke (1632-1704) é para muitos considerado o “pai do liberalismo político”. Hoje um clássico da filosofia política – liberalismo e contratualismo –, Locke deixou ao menos duas grandes obras:Dois Tratados sobre o Governo Civil e Ensaios acerca do Entendimento Humano.
Tal participação popular traz consequências, ressaltadas na obra de Maquiavel. Não há como esperar participação política pacífica e não conflituosa. A virtude cívica implica levar a público intenções, desejos, projetos que, muitas vezes, não são consensuais. O conflito decorrente da intensa participação política do povo nos negócios da cidade, parece ter sido uma das importantes contribuições de Maquiavel às formulações dos teóricos que lhe sucederam. Os humanistas cívicos exaltavam a participação política de todos os cidadãos, mas nenhum desses pensadores chegou a refletir sobre os possíveis choques que essa participação poderia causar e seu potencial criativo e destrutivo da cidade cuja ordem política se analisava.

Maquiavel não se limita a constatar que a participação política é imprescindível para a guarda da liberdade e seu potencial conflituoso inerente. Afirma ainda que as boas leis, ou seja, as leis que garantem a liberdade, surgem exatamente desse conflito, dos tumultos, não podendo suprimi- los sem que seja suprimida a liberdade. O conflito passa a ser, assim, um elemento constitutivo fundamental a uma comunidade política que queira realizar a liberdade. Supressão do conflito gera supressão da liberdade, segundo sua visão. A partir desse pressuposto, há que se criar formas institucionais que consigam dar vazão aos conflitos sem que a comunidade
política seja posta em risco, permitindo a ampla participação popular.


O conceito de virtù e seu contrário – o povo corrompido

Nem toda participação popular, porém, pode ser considerada boa. Maquiavel descreve, em oposição àqueles que possuemvirtù – qualificada como a intenção de alcançar o bem comum – os poderosos, que, em vez de apresentarem leis em favor da liberdade e do interesse público, as formulam tendo em vista o seu próprio poder. Por que tais poderosos, porém, detinham em suas mãos a iniciativa legislativa, quando o povo deveria participar ativamente dessas formulações? Por que o povo acatava, deliberava e aceitava regras que seriam sua própria ruína, como descreve Maquiavel? Há, aqui, como tratado no item anterior, um protagonismo dos muitos diante dos poucos. Um povo cheio de virtù não se deixa governar por tiranos; um povo corrompido, por sua vez, não consegue reconhecer os benefícios de uma cidade livre. Escreve Maquiavel emDiscursos:


Gabriel Pancera é doutor 
em Filosofia, 
pesquisador e professor 
de filosofia política da Universidade 
Estadual do Oeste do Paraná.
MAQUIAVEL, O REPUBLICANO
Por ocasião do lançamento de seu livro Maquiavel entre Repúblicas (Editora UFMG, 2010), a revista Conhecimento Prático Filosofia [edição 26] conversou com o filósofo Gabriel Pancera. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em filosofia política, Pancera analisou o republicanismo e o reformismo presentes na obra do autor de O príncipe. Confira a seguir trechos da entrevista conduzida pelo jornalista Matheus Moura:Um dos seus intuitos com o livro Maquiavel entre Repúblicas é elucidar crenças e valores republicanos de Maquiavel. Explique como isso foi feito e quais os principais pontos levantados no título.

A principal questão é mostrar como o republicanismo de Maquiavel, presente já em outras obras do autor, se concretiza numa proposta de reforma constitucional, que é o Discurso. Ao verificarmos como o autor pensava na prática certas categorias formuladas abstrata e conceitualmente, podemos compreender e dar maior precisão ao sentido de suas críticas e de suas formulações. É como se o concreto lançasse luzes sobre o conceitual, iluminando-o com novos sentidos e significados. É o caso, por exemplo, dos conflitos, elemento central nas formulações maquiavelianas. Sabemos, dos Discursos, segundo o qual parte da virtude de um estado está na sua capacidade de dar soluções 

político-institucionais às inevitáveis tensões, mas não sabíamos como pensá-lo efetivamente. Lendo 
o Discurso sobre as formas de governo, vemos como Maquiavel imagina que isso pudesse acontecer, 
pois ali ele formula uma proposta de reforma da forma de governo, que procura incorporar tais conflitos. 
Assim, ao retornarmos para as obras anteriores, conseguimos melhor compreender essa questão. 
E esse é apenas um caso.

No desenvolvimento do livro, foram usadas outras obras de Maquiavel, como O Príncipe 

e Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, para norteá-lo nas elucidações quanto 
ao pensamento republicano de Maquiavel. Pode-se dizer que Maquiavel explica 
Maquiavel? Por quê?

As pessoas em geral nutrem uma visão de Maquiavel como um autor maquiavélico. Não, ele não é 

bem isso. Ele é, sim, um estudioso da política, do campo da política. Está preocupado em desvendar 
seus mecanismos, compreender a realidade que o circundava e pensar em caminhos e soluções para 
os impasses de sua época. É dessa perspectiva que olha para esse objeto do mundo humano. 
Mas não se pode reduzir seu pensamento ao Príncipe, obra com base na qual, muitas vezes, 
Maquiavel foi lido como um maquiavélico. Não, não se deve reduzir seu pensamento a essa obra, 
pois parte importante é encontrado nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, lugar onde 
o autor se mostra claramente republicano, um autor defensor da vida ativa, dos valores cívicos, mas, 
sobretudo, um pensador de grande estatura, que formula e mobiliza um vigoroso aparato conceitual 
para compreender o universo da política e pensar possíveis alternativas para seus impasses. 
O esforço do pensador florentino fica claro no opúsculo examinado no livro Maquiavel entre Repúblicas, 
pois, para pensar a reforma constitucional de sua cidade, o autor pressupõe tudo o que 
tinha sido formulado anteriormente. Mas com a vantagem de apresentar os mesmos temas de 
maneira sintética e bastante articulada.

Como pode ser feita a aproximação do pensamento maquiavélico com 

o comportamento político contemporâneo dentro do conceito de 
bom governo e republicanismo?

Parece-me que as principais lições a serem aprendidas com Maquiavel têm a ver com o cultivo 

e a valorização da vida e das virtudes cívicas, e também com a compreensão da política como 
um lugar de solução de conflitos e construção de um espaço comum, capaz de vincular os homens. 
Os dois aspectos mostram- se, aliás, como crítica e alternativa para a sociedade individualista 
e de massa em que atualmente nos encontramos, caracterizada pelo isolamento, egoísmo e 
apatia das pessoas relativa às coisas que são comuns a todos e sobre as quais temos, 
queiramos ou não, responsabilidade.





Cidade localizada na Grécia, Esparta foi uma das principais cidades-estado da Grécia Antiga (ou Grécia Clássica). Com fortes caracteristicas bélicas, Esparta manteve relações tensas com Atenas, que culminariam com a Guerra do Peloponeso ocorrida entre 431 e 404 a.C., vencida pela Liga do Peloponeso (com Esparta na linha de frente) e cuja história foi relatada nos escritos de Xenofonte e Tucídides.


A Sereníssima República de Veneza, com a capital situada na bela Veneza, vigorou de 697, quando se desligaram do Império Bizantino, em 1797, quando fora invadida pelo Exército de Napoleão Bonaparte. Atualmente a cidade de Veneza é um dos cartões-postais da Itália e um dos grandes pontos turísticos da Europa.
LIVROS SOBRE MAQUIAVEL

O Príncipe de Maquiavel, uma Interpretação Moderna e Prática
(Saraiva, 2010) Tim Philips

Maquiavel, um Homem Incompreendido (Record, 2007) Michael White

Maquiavel & O Príncipe (Zahar, 2004) Alessandro Pinzani

Maquiavel (Zahar, 2003) Newton Bignotto

Maquiavel, Política e Retórica
(UFMG, 2009) Helton Adverse

A pena do florentino
Além de Discursos sobre as Primeiras Décadas de Tito Livio,Nicolau Maquiavel produziu uma obra considerável, que abrange os campos da filosofia, da estratégia política, da história, do teatro e da literatura. O Príncipe é seu livro mais lido e influente, sendo mencionado em cursos de ciências sociais (disciplina de filosofia política), filosofia, história, psicologia e administração. No entanto, o notável florentino escreveu, entre outros, a peça de teatro A Mandrágora. Escrita em 1503 e tornada pública apenas em 1524, A Mandrágora é considerada um dos melhores textos da dramaturgia de todos os tempos.

Tais foram, portanto, o início e o fim da lei agrária. E embora tivéssemos mostrado alhures como as inimizades, em Roma, entre o senado e a plebe, mantiveram a cidade livre, visto que delas nasciam as leis favoráveis à liberdade, parecendo, pois, desconforme com tal conclusão o resultado dessa lei agrária, digo que nem por isso renuncio a tal opinião: porque é tão grande a ambição dos grandes que, se não sofrer oposição por várias vias e de vários modos numa cidade, logo a levará à ruína. De modo que, embora o con¤ ito da lei agrária tenha demorado trezentos anos para acarretar a servidão de Roma, isso teria ocorrido muito mais cedo caso a plebe, seja com essa lei, seja com outros desejos seus, não tivesse refreado a ambição dos nobres. Vê-se também por aí como os homens estimam mais o patrimônio que as honras. Porque a nobreza romana sempre cedeu à plebe sem excessivos [straordinari] tumultos quando o assunto eram honras, mas quando se tratou do patrimônio, foi tão grande sua obstinação na defesa deste que a plebe, para saciar seu apetite, recorreu aos meios extraordinários que acima falamos.
Só a virtù do povo, ou seja, só a participação de todos na vida política da cidade, tendo em vista o bem comum e a preservação da liberdade de todos, é que pode manter a cidade a salvo de sua apropriação por interesses privados. A corrupção, entendida como a falta de capacidade de se dedicar energia ao bem comum, priorizando interesses privados em detrimento de interesses da coletividade, tem sua origem, segundo Maquiavel, na desigualdade existente na cidade.
Maquiavel não se limita a constatar que a participação política é imprescindível para a guarda da liberdade e seu potencial conflituoso inerente. Afirma ainda que as boas leis, ou seja, as leis que garantem a liberdade, surgem exatamente desse conflito, dos tumultos, não podendo suprimi-los sem que seja suprimida a liberdade.
Assim, a não realização da liberdade e inaptidão para a vida livre estão diretamente relacionadas a uma intensa desigualdade existente, levando- nos a crer que igualdade e liberdade se aproximam. Seria possível, então, entender que os conflitos tratados nos primeiros capítulos do livro seriam conflitos que, além de reivindicarem a garantia e a preservação da liberdade, relacionavam-se também com uma ânsia de realização da igualdade? Uma igualdade que, por sua vez, estivesse menos relacionada com as honras do que com as propriedades distribuídas desigualmente entre os membros da comunidade?
À parte essas hipóteses dificilmente verificáveis nos limites deste artigo, impossível não reconhecer haver uma conexão entre a virtù do povo e a virtù dos governantes, tal como Maquiavel descreve. Magistratura cheia de virtù e povo participativo e atento; magistratura permeada por interesses privados e povo corrompido, parecem ser relações constatáveis com base no texto de Maquiavel.

Como evitar a corrupção e estimular a virtù?
Apresentadas as relações que Maquiavel estabelece entre participação popular, virtù, e garantia do respeito à liberdade, resta uma pergunta: se são a participação e a virtùtão fundamentais para a realização da liberdade e para impedir que a comunidade política se corrompa, como estimulá- las em seus cidadãos?

Provavelmente ele acreditava que, ao escrever seu livro, estaria estimulando esse valor nos outros cidadãos de Florença. Mas a questão se coloca tal como antes: como estimular a virtù em todo um povo, para não permitir que uma república, que uma cidade seja corrompida? Há um meio de estimular os cidadãos pelas leis da própria república? Maquiavel esboça duas possíveis respostas de como estimular a virtù nos cidadãos de uma cidade. O primeiro modo é mediante a educação voltada à participação na vida pública. O segundo modo é estimular os cidadãos por meio de exemplos: grandes homens virtuosos poderiam ser modelos a serem seguidos pelos povos que eles pretendem (re)ordenar. Os grandes exemplos históricos também podem cumprir esse papel.
Saber qual a forma de estimular a virtù, a participação do povo na vida pública das cidades e das sociedades, no entanto, é uma importante questão que não é completamente resolvida na obra de Maquiavel.
Autores republicanos contemporâneos reconhecem, com base na referência de Maquiavel, a imperatividade do exercício da virtude cívica para a realização dos valores republicanos, notadamente para a garantia da liberdade. Virtude cívica, comunidade política e garantia da liberdade dos cidadãos na vida em sociedade, constituída pela sociedade política e suas instituições estão, ainda contemporaneamente, indissociáveis.
Já que a participação política, o exercício da virtù tal como descrita por Maquiavel, é pressuposto do exercício do poder, não deveríamos estar preocupados em avançar mais um passo e responder à desconfortável pergunta: como o sistema político pode estimular a participação política de seus cidadãos? Por meio de leis que os obriguem a participar? Não seria essa, no entanto, uma forma de restringir a própria liberdade que se quer alcançar?
Bem ou mal resolvida, a virtude cívica é, certamente, um dos componentes que compõem a noção de liberdade tal como concebida pela tradição de filosofia política chamada republicana, bastante presente nos debates contemporâneos. Tal característica, por sua vez, deve boa parte de sua origem teórica à obra Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio.

Texto retirado da Revista Filosofia: Conhecimento Prático - Editora Escola



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