Machado de Assis encontra Nietzsche

Cada um a seu modo - um na Literatura, outro na Filosofia -, os autores da segunda metade do século XIX confrontaram valores sociais vigentes e propuseram a criação de um novo homem.

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O que há em comum entre Machado de Assis (1839-1908) e Friedrich Nietzsche (1844-1900), além de terem se destacado no âmbito filosófico-literário da segunda metade do século XIX? Machado foi escritor e nasceu no Brasil. Nietzsche, filósofo, era alemão. Apesar de viverem em continentes separados e em realidades muito distintas, há similaridades e até uma possível complementaridade entre o pensamento de ambos. As palavras de Nietzsche acerca da humanidade encontram eco no homem retratado na obra de Machado de Assis.
O desdobramento disso é a maneira como ambos se relacionaram com a construção do conhecimento ao longo dos tempos. Machado de Assis deixa transparecer no curso de sua obra semelhanças com as ideias de Nietzsche sobre o pensamento grego e mesmo sobre o pensamento filosófico e suas grandes estruturas. A grande cruzada de Nietzsche contra o cristianismo e contra as religiões, por exemplo, tem seu início creditado a uma enfermidade dos gregos, o que ganha ponto de contato com as obras de Machado de Assis.
Outra semelhança entre os autores é o fato de, em sua Filosofia, Nietzsche primeiro negar para poder afirmar depois. Nega os valores até então aceitos para oferecer novos olhares sobre velhas coisas, assim como faz Machado. Essa tática é aplicada quando pretende fazer surgir um novo homem, o Übermensch – “super-homem”. Ele seria liberto de todas as promessas celestiais e dos valores cristãos, o que teria transformado definitivamente o curso da humanidade.

CONTRA A MORAL
O que Nietzsche tenta mostrar é que a humanidade foi vítima de grandes equívocos que perduraram por milênios. Esses equívocos seriam a Metafísica e a Moral. É contra eles que Nietzsche propõe uma grande mudança.

É no “ecce homo machadiano” que mostra-se o homem que Nietzsche viu enfermo. O super-homem é esboçado na própria obra de Machado de Assis como, por exemplo, na figura de Quincas Borba, personagem de seu livro homônimo.
É curioso notar que foi na Literatura grega e não na Filosofia que Nietzsche encontrou os sinais para o entendimento sadio da humanidade.
É na tragédia grega que encontramos o “homem”. Ele está ali. Nietzsche diz: “Justo a tragédia é a prova de que os gregos não foram pessimistas”. Lidando com as suas misérias, com sua própria natureza inclinada tanto ao vício quanto à virtude. Nas palavras de Nietzsche, vícios e virtudes não são contradições, mas legítimas manifestações do homem. O homem não pode negar sua própria carne e suas inclinações, não pode negar a vida.
As grandes tragédias gregas trazem os dilemas humanos e, geralmente, têm desfechos ruins. Nietzsche crê que devemos nos apropriar deles, não ficarmos indiferentes, não abandoná-los: “Guardar na honra aquilo que acaba dando errado, tanto mais pelo fato de ter dado errado, isso está bem mais perto de fazer parte da minha moral”.

A trajetória de Machado de Assis
Um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) nem chegou a frequentar a escola regularmente. Pobre, epilético e neto de escravos alforriados, sempre teve grande interesse pela leitura e conseguiu instruir-se por conta própria. Seus primeiros versos foram publicados aos seus 16 anos, no jornal A Marmota época em que trabalhava como aprendiz em uma tipografia. Mas Machado só veio a ser reconhecido como um bom escritor na década de 1870, fase em que ainda publicava obras ligadas à Literatura romântica. A grande reviravolta de sua carreira ocorreu na década de 1880, quando uma mudança de estilo e de conteúdo fundou o Realismo no Brasil. Romances como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891), mencionados nesta matéria, assim como Dom Casmurro (1899), outro de seus clássicos, revelam toda sua ironia e espírito crítico. É nessas obras que Machado de Assis faz uma profunda reflexão sobre a sociedade brasileira e os valores do homem que nela vive. Por ter escrito em português, seu reconhecimento internacional foi mais tardio. Só no final do século XX suas obras foram traduzidas para outros idiomas, como o inglês, o francês, o espanhol e o alemão, o que despertou interesse mundial e o alçou ao posto de um dos grandes nomes do Realismo.

Ficou para nós um sentido negativo da palavra tragédia: as grandes desgraças, a morte e as doenças são acontecimentos que recusamos e queremos longe de nossas vidas – como se fosse possível viver alheio a eles. A isso Nietzsche chama de antinatureza humana – o estranhamento do homem aos acontecimentos da vida. Temos a noção moral da recompensa: aos bons lhes ocorrem coisas boas; aos ruins, a vida lhes mostrará a paga algum dia. Os conceitos de culpa e de merecimento se encaixam em silogismos morais. Quando não percebemos relações entre pessoas e destinos ruins, as creditamos à tragédia.Para percorrer todo esse caminho de encontrar nos personagens machadianos o homem e o super-homem de Nietzsche, pode-se recorrer a seus romances e contos. Há um pensamento filosófico na obra de Machado de Assis que se deixa revelar em seus personagens e que pode ser relacionado à obra filosófica de Nietzsche. Ele transparece especialmente nas vozes dos narradores de suas obras. Há, também, outro aspecto, esse histórico-social. Ao retratar o homem do século XIX, Machado de Assis descreve um minicosmos da humanidade que Nietzsche quer ver transformada.
Nietzsche pretende afirmar a vida contra a moral – em especial contra a moral cristã. Machado de Assis, de forma semelhante, encontra justificativas para tudo o que é reprovável no espírito humano. Usando o cinismo como recurso, o escritor pretende reabilitar a vida de seu caráter perverso.

Nietzsche sabe que afirmar é assumir aquilo que até então é inaudito, condenável, deplorável. E Machado de Assis passeia pelo teatro da vida, desvendando essa fina capa que os homens usam em sociedade para esconder suas próprias hipocrisias. Por vezes eles se complementam. Aquilo que um diz, o outro exemplifica.
Machado dá caráter de normalidade aos instintos mais puros dos seres humanos, que só podem ser vistos como normalidade dentro de sua estratégica ironia. Nietzsche condena a sociedade ocidental, desde seus primórdios, por ter abandonado o seu lado dionisíaco.
Mas não seria o filósofo Quincas Borba um discípulo de Zaratustra? Nietzsche fala de pathos trágico; Borba nos fala de reabilitar a dor e de retificar o espírito humano. Em sua teoria filosófica, o Humanitismo, Borba nos mostra como a frugalidade e as pequenas sensações da vida estão de acordo com as grandes intenções filosóficas:
“Venha para o Humanitismo, ele é o grande regaço dos espíritos, o mar eterno em que mergulhei para arrancar de lá a verdade. Os gregos faziam-na sair de um poço. Que concepção mesquinha! Um poço! Mas é por isso mesmo que nunca atinaram com ela. Gregos, subgregos, antigregos, toda a longa série dos homens tem se debruçado sobre o poço, para ver sair a verdade, que não está lá. Gastaram cordas e caçambas; alguns mais afoitos desceram ao fundo e trouxeram um sapo. Eu fui diretamente ao mar. Venha para o Humanitismo.”

NIETZSCHE DIZ QUE NOBRES SENTIMENTOS CRISTÃOS, COMO O AMOR AO PRÓXIMO, SÃO FRAQUEZAS. ZARATUSTRA FOI “TENTADO” POR TAIS SENTIMENTOS, MAS RESISTIU A ELES

Nietzsche diz que a grandiosidade dos gregos estava no milagre entre o dionisíaco e o apolíneo. E chama de antigregos aqueles que vieram a partir de Eurípides, um dos autores de tragédias gregas. Suas críticas seriam por colocarem a racionalidade como elemento principal do conhecimento.

O SUPER-HOMEM de Nietzsche passa pela recriação dos valores, pela superação do niilismo, pela reavaliação de ideias velhas e a criação de ideias novas, pela sede de poder e por um processo contínuo de superação. Ele se guia apenas por sua energia e por sua vontade de poder, sem se acorrentar a valores morais
As palavras de Nietzsche soam como as de um profeta a quem lhe é dada a grande revelação: “Alguém tem uma ideia precisa, no final do século XIX, sobre o que os poetas de épocas fortes chamavam de inspiração? Se assim não for, eu a descreverei...”. E continua: “O conceito de revelação, no sentido de que, de repente, com uma seriedade e fineza indizíveis, algo se torna visível, audível, algo capaz de sacudir e modificar uma pessoa no mais profundo de seu ser”.

Nietzsche define como fraquezas de almas enfermas os nobres sentimentos cristãos, entre eles o amor ao próximo. Ele diz que Zaratustra foi “tentado” por tais sentimentos, mas resistiu a eles. “Minhas experiências me dão o direito de desconfiar, mormente no que diz respeito aos assim ‘impulsos’ desinteressados, de tudo aquilo que tem a ver com o ‘amor ao próximo’. Para mim o amor ao próximo é nada mais do que uma fraqueza. A superação da piedade eu a coloco entre as virtudes nobres, a tentação de Zaratustra.”

Para Nietzsche, o cristianismo desconstitui os seres humanos de suas verdadeiras identidades. Todos os valores cristãos são na verdade armadilhas de almas enfermas. E Machado de Assis legitima o pensamento nietzscheano. Muitos personagens de seus livros, entre eles Quincas Borba, desfilam esses antivalores dos quais nos fala o filósofo alemão. O que Machado faz é, principalmente, justificar-lhes ironicamente.
Nietzsche usa os aforismos e Machado a ironia. O universo machadiano é feito de desfaçatez, de encobrimento, de tentativas de salvar as aparências. E é para nos revelar psicologicamente esse mundo que Machado de Assis usa a ironia.
Por meio de explicações de um narrador onisciente temos acesso à lógica existente por trás das ações. Por exemplo, no famoso episódio do enterro de Brás Cubas, o defunto autor nos revela que os seus 11 amigos que lhe foram prestar as últimas homenagens, sinceros amigos, o fizeram em verdade por benefícios recebidos, benefícios pecuniários.

Segundo o Humanitismo, filosofia criada por Quincas Borba, a preguiça seria apenas uma manifestação necessária do homem
Nesse mesmo livro temos a descrição do cunhado Cotrim: “Arguiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo do que o déficit”. Se na verdade, com o seu olhar irônico, Machado queria antes condenar do que absolver, dando supostas explicações para as ações de seus personagens, sua crítica é antes uma crítica da própria sociedade. Isso porque as manifestações individuais são moldadas por ela.

A CRUELDADE, A INVEJA E A PREGUIÇA SERIAM APENAS MANIFESTAÇÕES NECESSÁRIAS DE HUMANITAS. PENSAMENTO QUE VAI AO ENCONTRO DA FILOSOFIA DE NIETZSCHE

No genial capítulo “Formalidade”, do livro Memórias póstumas de Brás Cubas, o narrador louva a sagacidade representada em um quadro onde seis mulheres turcas usam um véu transparente. O véu cumpre ao mesmo tempo a ordem religiosa de que as mulheres devam esconder seus rostos – afinal de contas, elas não deixam de usar os véus – e revela a beleza dessas mulheres através da transparência. Nietzsche nos diria que a vaidade é um instinto humano, ele mesmo um grande egocêntrico.

O Humanitismo de Quincas Borba
Uma Filosofia foi criada por um dos principais personagens de Machado de Assis, Quincas Borba. Sua descrição aparece primordialmente no romance Quincas Borba, mas o Humanitismo também é mencionado ao longo de todo o livro Memórias póstumas de Brás Cubas. Um dos principais e mais explícitos trechos a explicar tal Filosofia está no capítulo VI de Quincas Borba, quando o protagonista conversa com o personagem Rubião: “– Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais feitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
– Mas a opinião do exterminado?
– Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.”

QUINCAS BORBA E ZARATUSTRA
O esquema bem armado do pensamento dialético hegeliano, que inevitavelmente traz a história num processo histórico progressivo idealista, é reestruturado por Quincas Borba. Ao explicar as fases do mundo como Estática, Expansiva, Dispersiva e Contrativa, ele pretende dar conta das supostas contradições do mundo. Apresenta, então, o Humanitismo – sua Filosofia.

Quincas Borba foi um colega de classe de Brás Cubas. Eles se reencontraram no passeio público quando Quincas Borba já havia se tornado um mendigo. Neste encontro, Quincas Borba pediu algum dinheiro para o ex-colega e num abraço de despedida tomou-lhe “emprestado” o relógio. Algum tempo depois, Brás Cubas recebe uma carta de Quincas com um novo relógio, dizendo que a sua sorte havia mudado graças a uma herança e que ele gostaria também de apresentar uma nova explicação filosófica superior a tudo o que havia sido dito até então.
Quando vamos ao Zaratustra de Nietzsche, tomamos contato com alguém que estava a seis mil pés acima de todos. Nietzsche nos diz no seu ecce homo que tudo o que haviam dito antes dele seriam meras sombras. Segundo o filósofo alemão, o conhecimento, que na figura de Zaratustra era trazido aos homens, não tinha grau de comparação com qualquer coisa existente.
De forma semelhante, Quincas Borba diz em sua carta a Brás Cubas que, comparado ao seu pensamento, o estoicismo de Zenão e Sêneca era coisa de criança. O estoicismo é justamente uma corrente grega que se baseia no equilíbrio do homem por sua capacidade de lidar com os males da vida com resignação. Apesar de racionalista, prega uma atitude afirmativa diante de tudo aquilo que lhe é externo.
Vênus de Milo, representação da deusa da beleza. Nietzsche explica que os valores, como a beleza, foram criados pelo homem. Ele propõe a revisão de todos os valores antigos
Quincas Borba discorre sobre sua Filosofia a um estupefato Brás Cubas. Afirma ser o homem parte de um todo humanitas. E a humanidade é senão partes de humanitas que têm por objetivo sua expansão no universo. Ele defende que todas as ações humanas concorrem num objetivo comum da humanidade, e que aqueles que são assolados, assim como os que assolam, nada fazem a não ser colaborar, cada um a seu modo, com essa força que lhes sobrepõe. De acordo com o Humanitismo, a vida é luta, e é melhor lutar do que não viver. A única desgraça é não ter nenhum papel nesse grande teatro. Quincas nos diz que não há mendigo que não prefira a miséria à morte.

VIDA É LUTA. O ALGOZ QUE EXECUTA O CONDENADO É HUMANITAS QUE CORRIGE HUMANITAS. E ENTÃO TEMOS JUSTIFICATIVA PARA A FOME, A MISÉRIA, OS FLAGELOS E AS GUERRAS

A crueldade, a inveja e a preguiça seriam apenas manifestações necessárias de humanitas. Pensamento que vai ao encontro da Filosofia de Nietzsche,. Poderíamos ouvir o filósofo dizendo: me falta um critério confiável para saber o que é um sentimento de culpa. Eu não gostaria de abandonar uma ação ao seu próprio destino depois de cometê-la. A gente perde muito facilmente o olhar correto para aquilo que a gente fez quando o desfecho é ruim. Um sentimento de culpa me parece antes como um olhar maldoso.
QUINCAS BORBA, o romance, conta a história de Rubião, ingênuo rapaz que tornase discípulo e herdeiro universal do filósofo Quincas Borba sob a condição de cuidar de seu cachorro. Rubião vive na pele todo o fundamento teórico do Humanitismo
Seja na luta de dois cães por um osso ou, como diz Quincas Borba, numa luta mais sublime entre um cão e um ser humano por um osso, vemos o movimento de luta pela vida. E, nesse último caso, o homem usa de astúcia e inteligência para sair vitorioso.
Ao saborear um pedaço de frango, ele diz ao amigo que muitas forças estiveram envolvidas nesse processo, desde a dos negros que colheram a madeira usada para produzir o barco até a dos outros homens trazidos por esse barco junto ao milho para alimentar a galinha que acabou num pedaço em suas mãos. Tudo isso é a força de humanitas a favor de si mesma.

A trajetória de Nietzsche
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu na Alemanha, em 1844, em uma família luterana. Seus avós eram pastores protestantes e Nietzsche chegou a pensar em seguir o mesmo caminho, mas rejeitou a religião ainda na adolescência – tornou-se ateu. Começou cedo a estudar Filosofia e foi muito influenciado pela leitura do filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), tendo se tornado aluno brilhante, com sólida formação clássica. Aos 24 anos já era professor de Filosofia na universidade de Basileia. Por problemas de saúde precisou abandonar o magistério, mas continuou a escrever sua obra filosófica freneticamente até que uma crise de loucura, em 1889, encerrou sua fase produtiva. Ela o acompanhou até a morte, em 1900. Nietzsche, em sua obra, foi um crítico da cultura ocidental e de suas religiões, assim como repudiou a moral judaico-cristã. Ele propôs a genealogia dos valores em detrimento do idealismo metafísico. Sua meta era desmascarar os preconceitos e as ilusões humanas escondidos em valores universalmente aceitos.
– Mas a opinião do exterminado?
– Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.”

Vida é luta, diz Quincas Borba. O algoz que executa o condenado é humanitas que corrige humanitas. E então temos justificada para a fome, para a miséria, para os flagelos e para as guerras. Se o homem se compreende participante desse grande sentido de vida verá que a dor é uma ilusão.

“Reorganizada a sociedade pelo método dele, nem por isso ficavam eliminados as guerras, a insurreição, o simples murro, a facada anônima, a miséria, a fome, as doenças; mas sendo esses supostos flagelos verdadeiros equívocos do entendimento, porque não passariam de movimentos externos da substância interior, destinados a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da monotonia universal, claro estava que a sua existência não impediria a felicidade humana.”
Seguindo raciocínio parecido ao de Machado, em Zaratustra lemos que Nietzsche reabilita o ódio, a inveja e a guerra: “Irmão, a guerra e as batalhas são males? Pois são males necessários; a inveja, a desconfiança e a calúnia são necessárias entre as suas virtudes”. Passagem que remete às imagens: shutterstock palavras de Machado de Assis: “O vício é o estrume da virtude”.

Há uma tentativa, feita por Nietzsche, de rever todos o valores antigos, considerados por ele como valores “menores”, desprezíveis no ser humano: “O homem é que pôs valores nas coisas a fim de se conservar; foi ele que deu um sentido às coisas, um sentido humano. Por isso se chama ‘homem’, isto é, o que aprecia”. E segue: “Avaliar é criar valores”.
Se o homem cria os valores para si mesmo, ainda que atribua essa criação a Deus ou aos céus, para Nietzsche seria chegado um novo tempo em que todos essses valores deveriam ser questionados e revistos. Machado de Assis também traz à tona valores sociais vigentes e, com muita ironia, denigre a validade de cada um deles. Talvez Nietzsche fosse um personagem de O Alienista de Machado. Talvez Machado fosse o super-homem de Nietzsche. Se as distâncias não permitiram que um se desse a conhecer para o outro, suas obras no entanto dialogaram em um mundo que só começamos a descobrir.
SÉRGIO RODRIGO MÉLEGA É BACHAREL EM LETRAS – ALEMÃO/ PORTUGUÊS – PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. LICENCIADO EM PORTUGUÊS NA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA MESMA UNIVERSIDADE. PUBLICOU ARTIGO ACADÊMICO NA REVISTA MELP E ENTREVISTOU EDGAR MORIN PARA ESTA REVISTA. MELEGA1@GMAIL.COM


Texto retirado da Revista Filosofia - Ciência & Vida

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