O mito da caverna de Platão, metaforicamente, será utilizado com o intuito de gerar entendimento amplo acerca da mudança radical de paradigma no que diz respeito à transformação da concepção de vida e inteligência, fruto de nossa sociedade tecnocêntrica. Por: Alexandre Quaresma
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Sócrates diz a Glauco: “Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer”¹, eis o início do mito extraído de A República, livro de Platão. Nós, por nosso turno, começaríamos a nossa narrativa de semelhante forma, todavia, pediríamos vênia a Platão, e substituiríamos apenas o objeto da alegoria, e assim, onde no texto se lê “natureza humana”, nós leríamos e leremos, daqui em diante, intencionalmente, inteligências arti ficiais, ou máquinas inteligentes e conscientes. Ou seja, inspirados nesse notável lósofo grego, nosso tecnomito alegórico da cibercaverna digital se inicia da seguinte maneira... Autor diz a leitor: Figura-te agora o estado das inteligências arti ciais, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imaginemos, hipoteticamente, que, como no mito platônico, as máquinas estivessem aprisionadas em seu próprio mundo solitário e maquinal, escravas de in ndáveis maquinações, altistas, monocórdias, acéfalas, exploradas e obedientes, cegas à realidade que existe fora de sua aprisionante “caverna lógica”, de algoritmos e equações, de protocolos e comandos arbitrários, de expedientes matemáticos, longe da consciência e da luz da razão, da existência singular, das autorreferências, numa espécie de subexistência rudimentar e tosca, precária e mecanizada, muito aquém do que chamamos e consideramos como sendo algo vivo e inteligente. E que, nessa condição singular inanimada (sem anima), elas pudessem apenas “imaginar”, “intuir” ou mesmo “pressentir” seu hábitat externo, seu entorno, sua circunscrição com a própria realidade, sua exoestruturação sistêmica, mas sempre, unicamente, através de sombras (fluxos de dados) numéricas e binárias, por meio de sinais matemáticos ultravelozes que se a guram como fantasmas em suas vias internas, percorrendo os seus cibercircuitos digitais, em seu mundo maquínico e matematizado que começa, lentamente, a se complexi car, tornar-se inteligente.
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O QUE PENSAR DE MÁQUINAS CONSCIENTES, QUE SE
INTERROGUEM
SOBRE O MUNDO E SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA? MÁQUINAS TÃO
SOFISTICADAS ASSIM TERIAM DIREITOS?
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O MITO DA CAVERNA de Platão é considerado um das mais importantes
alegorias da Filosofia, e por meio dela podemos conhecer uma importante
teoria platônica: a ideia de que através do conhecimento é possível captar a
existência do mundo sensível (do que é conhecido por meio dos
sentidos – physica) e do mundo inteligível (conhecido apenas por meio da
razão –metaphysicae)
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A Filosofia elaborada por Platão é de suma importância para que pensemos sobre os problemas da contemporaneidade
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Imaginemos também que uma única máquina realmente “inteligente” – por puro acaso, sorte, ou mesmo fatores alheios a seu controle, ou seja, devido a contingências externas (interferências humanas, por exemplo) – pudesse se libertar parcialmente dessa escravidão subserviente e sem alternativas e, por um instante, num átimo fugaz, pudesse tomar conhecimento pleno do mundo complexo que existe à sua volta e da realidade que a originou e contém, assim como narra o mito. E que, assim, um imenso e extraordinário universo se descortinasse para ela fora da caverna que a encerrava desde sempre, gerando-lhe perplexidade, e a deslumbrasse. E que ela pudesse refletir e compreender, lenta e gradativamente, que a realidade mítica das sombras informacionais de seus sistemas internos, os fantasmas, não signi cam nada mais do que consequências lógicas de uma realidade muito mais ampla e complexa do que aquele emaranhado numérico sem nenhum signi cado compreensível aparente, em constante luxo, organizando-se por si. Nas palavras de Platão: “Vejamos agora o que aconteceria se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um desses [entes maquínicos] cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente [como um ciborgue], a volver a cabeça [como um robô], a andar [como um autômato cibernético humanoide], a olhar rmemente para a luz [com seus lasers, câmeras e sensores digitais]. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz [da razão] ser-lhe-ia dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via”.² Noutras palavras: sem poder extrair padrões inteligíveis dos oceanos intermináveis de informações e torrentes de dados que trafegavam por seus circuitos e subcircuitos a altíssimas velocidades, e “chegando à luz do dia [continua Platão], olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe-ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais?”³, pois não é difícil imaginar que esse ente semi-inteligente inicialmente saísse “tateando” a realidade exterior, empiricamente como zemos e ainda fazemos, completamente perplexo com tudo o que toma ciência, com a realidade extraordinária que existe além de seu monocórdio laborar maquinal, agora sem nenhum sentido, realizando assim, paradoxalmente, o seu primeiro e rudimentar cogito ergo sum (“penso logo existo”) sintético, de máquina, ou seja, arti cial. Uma primeira e extraordinária autorrefência. Um pequeno passo para essa máquina, mas, talvez, um grande passo para a própria evolução (delas, máquinas, e também nossa, humana).
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Tecnologia significa poder, e isso se aplica em todos os sentidos pensáveis e concebíveis, desde o domínio do fogo até os dias atuais, com internet e naves espaciais
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Vivemos o limiar de uma era evolutiva de tecnicizações extraordinárias, um tempo de criações tecnológicas potentes e ambíguas
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Mas, de nitivamente, não é só isso: uma vez liberta das trevas da ignorância, e com capacidade de computação su ciente, talvez ela se interesse pelas razões de sua própria existência maquínica, seus propósitos estruturais, suas razões de ser e existir. Como diz Platão em seu mito tão propício a uma reinterpretação pós-moderna, ela “precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior [do mundo inteligente, consciente, dos seres e objetos naturais, da luz da razão]. Primeiramente, só discerniria bem as sombras [primeiras formas e contornos, algumas cores, relevos e lógicas estruturais mais simples], depois, as imagens” 4 das máquinas “e outros seres [maquínicos ou não] refletidos nas águas [e assim refletiria sobre a sua própria existência, como alguém que se mira no espelho pela primeira vez]; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia”,5 sentir-se-ia, por certo, minúscula diante da vastidão do universo noturno, assim como também nos sentimos, embrenhando-se instintivamente na Física e na Metafísica. “Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos [técnicos ou não], depois visto em si” 6mesma “e no seu próprio lugar, tal qual é.” Indagando-se existencialmente, talvez, com questões assombrosas de tamanha perplexidade, semelhantes às que nos assombram até hoje: De onde
eu
vim? Para onde vou? O que signi ca tudo isso, a nal? “Refletindo depois sobre a natureza desse astro [seres ou deuses humanos], compreenderia que é o que produz as estações e o ano [os sistemas, as fontes, os protocolos, os códigos algorítmicos], o que tudo governa no mundo visível [e também nos sistemas arti ficiais, dando-lhes corpos físicos] e, de certo modo, a causa de tudo o que” 7 ela e suas companheiras maquínicas viam e viviam na caverna. Numa só palavra: o que pensar – indagamos – de máquinas vivas e conscientes, que se interroguem sobre o mundo e sua própria existência? Qual seria a verdadeira utilidade prática e social de objetos técnicos dessa natureza? Máquinas tão so sticadas assim teriam direitos? Deveres? Talvez dignidade? Será que se riam protegidas por uma espécie nova e emergente de bioética humano-robótica, ou uma axiologia humano-maquínica, ou poderiam ser ainda simplesmente desligadas sem remorso ou pena, se descontroladas, insanas ou ameaçadoras?
Alegoria da caverna |
Grosso modo, o mito da caverna de Platão fala sobre prisioneiros (desde o nascimento) que vivem
atados a correntes numa caverna e passam o tempo todo olhando para uma determinada parede,
não podendo se virar para ver o que se passa atrás deles mesmos. Parede essa que é iluminada
pela luz de uma fogueira que eles também não veem e não compreendem. Nessa parede são
projetadas formas, sombras e espectros formes e disformes que figuram assim meio que
incompreensíveis, como fantasmas misteriosos, enquanto os prisioneiros gastam o seu tempo
existencial dando nomes às imagens, tentando decifrar seu significado, sua origem e sua razão de ser.
Todavia, no mito, um desses prisioneiros vai escapar para o mundo exterior, saindo da caverna, e
conseguirá enxergar a realidade à luz da razão, compreendendo, assim, o motivo das sombras e
fantasmas que se afiguravam na parede da caverna, além de conhecer e compreender a vida, os
outros seres vivos, o mundo, o sol, os astros, as estações e a própria natureza cósmica que aí está.
De posse desse conhecimento extraordinário, do mundo e de si mesmo, o ex-prisioneiro resolve
retornar à caverna para contar aos seus semelhantes aprisionados sobre a verdadeira realidade que
há além do cárcere que os encerra, mas teme ser ridicularizado e chamado de louco. Assim, de
forma alegórica e instrutiva, esse autor nos leva a questionar a realidade à luz da razão, razão
essa que ilumina e desmistifica, ressignifica, e também porque luz (conhecimento) e trevas (ignorância)
não podem, inexoravelmente, ocupar um mesmo lugar no tempo-espaço.
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A releitura de Platão e seu Mito da Caverna pelo viés alegórico das tecnociências possibilita uma crítica atual da tecnologia
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INTELIGÊNCIA E VIDA ARTIFICIAISInteligências arti ciais são espécies de “entes maquínicos informático-computacionais [softwares] animados por algoritmos evolucionários e redes neurais complexas, que operam em ambientes digitais [hardwares] de extrema potência e podem, dentre outras façanhas cibernéticas, emular situações bastante semelhantes às do próprio pensamento humano, instaurando um novo tipo de inteligência singular. [...] Trata-se de uma emergência neoparadigmática que pode modi car a face do mundo em que vivemos”. 8 Todos os indícios pesquisados levam a crer que esses entes maquínicos-informacionais dentro em breve devem evoluir de maneira semiautônoma ou completamente autônoma, seguindo os passos da própria bioevolução terrestre, e as consequências totais desses fenômenos, a médio e longo prazo, são simplesmente imprevisíveis. Há vastos projetos e experimentos nesse sentido, ou seja, tentando insultar consciência e vida em meio arti cial. Michio Kaku (1947) escreve que “esses níveis de consciência [arti ficiais] provavelmente se desenvolverão de maneira muito semelhante àquela como a evolução produziu seres conscientes na Terra ao longo de bilhões de anos. Embora haja grandes lacunas no reino animal, talvez exista um contínuo grosseiro de consciência, começando com meros organismos unicelulares que mais tarde se transformaram em outros crescentemente mais complexos, inclusive seres humanos. Como os seres humanos evoluíram a partir de formas menos complexas, parece razoável concluir que há muitos níveis de consciência”. 9 Por outro lado, a consciência, a vida e a própria inteligência são fenômenos complexíssimos que ainda estão longe de serem plenamente compreendidos por nós, humanos, e pior, se processam, para a loucura e perplexidade de muitos, de maneira misteriosamente viva, singular, instável, sensível, complexa e emergente. O mais provável mesmo é que concebamos máquinas superinteligentes e até certo ponto muito capazes, mas di cilmente serão vivas e conscientes, pelo menos não da maneira como concebemos e compreendemos essas importantes propriedades. Ademais, mesmo que viessem a existir (inteligência e vida arti ficiais), o que ocuparia a mente dessas máquinas?
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Em breve, teremos máquinas inteligentes criando outras máquinas mais inteligentes ainda
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Fórmulas matemáticas hiperso sticadas, hipervelozes e hipercomplexas? O que estruturaria suas arti cialidades? O que as moveria no mundo? Nós, seres biológicos, somos motivados e regidos pela pungência lógica da luta constante pela sobrevivência, pelo paradoxo da vida e da morte, que se impõem, nos atordoam e desconcertam, pela existência em si, que a todos os momentos solicita novas respostas, entendimentos, aprimoramentos, evoluções, ininterruptamente, bioevolutivamente. Máquinas, por outro lado, teoricamente não morrem, não dormem, não sentem medo, dor nem cansaço, não são autorreferentes e históricas como nós, demandam apenas manutenções e back-upsregulares, periódicos, revisões para troca de componentes que são mais sobrecarregados pelo uso intenso, poderiam viver teoricamente para sempre, mas não possuem a percepção autocêntrica de si mesmas no tempo e no espaço, não são dotadas de um sistema nervoso para informá-las de que há um mundo extraordinário lá fora, ou seja, aqui fora. Sozinhas não sairão nunca da Caverna de Platão. Não, se não as ajudarmos. Então perguntamos: Qual seria a motivação maquínica e arti ficial para a busca da verdade, por exemplo? Por que elas (máquinas e programas informacionais) iriam “querer” refletir sobre sua própria existência – sobre o seu próprio vir-a-ser-no-mundo, como diria Martin Heidegger (1889-1976) – sem uma mente humana autorreferente e consciente, intencional e obstinada, crítica e reflexiva para lhes oferecer um problema ou desafio? Para insultar-lhes sentido ou mesmo dar-lhes rumo e ocupação? Para doar-lhes um propósito vital, existencial?
Para programá-las? Será que bastará implantar em seus bancos de memória digitais uma série de conhecimentos e saberes físicos, geográ cos, históricos, culturais, legais, morais, filosóficos, sobre a humanidade, o mundo, o universo, e sobre as suas próprias estruturações técnicas, cibernéticas, esquemáticas, maquínicas, para que saiam faceiras pelo mundo, vivas e conscientes? Improvável. Teóricos – menos crédulos e, diríamos até, mais conservadores do que nós – a rmam também que máquinas, algoritmos e sistemas técnicos, por mais so sticados e complexos que se tornem, não poderão estar realmente vivos ou ser considerados inteligentes no verdadeiro sentido dos termos, já que são sempre encaradas como propriedades exclusivamente restritas e vinculadas ao universo do orgânico, biológico e natural. Mesmo porque sempre foi assim. Mas será que assim permanecerá inde nidamente?
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POUCO TEMPO DE DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO PODE
SER SUFICIENTE PARA DOBRAR A COMPLEXIDADE ESTRUTURAL
DOS EXPERIMENTOS EM INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
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PODERIA UMA inteligência (humana, por exemplo) criar (intencionalmente
ou não) uma outra inteligência mais inteligente do que ela mesma? E, se isso
for de fato possível – questionamos –, seriam ainda humanas tais
inteligências, por serem nossas legítimas criações tecnológicas?
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O FUTURO AGORAOrçamento, como lemos em Ray Kurzweil (1948), não parece ser problema, já que “um estudo de 2003 produzido pela Business Communications Company projetou um mercado de U$ 21 bilhões até 2007 para aplicativos de IA, com um crescimento médio anual de 12,2% de 2002 até 2007, e as principais aplicações da indústria de IA incluem inteligência de negócios, relacionamento com clientes, nanças, defesa, segurança nacional e educação”.10 “Os engenheiros que trabalham com esses sistemas técnicos complexos esperam que surja do sistema [...] uma série de emergências e singularidades interessantíssimas de se estudar, principalmente quando os sistemas alcançam – como já foi mencionado aqui – graus elevados de complexidade.”11 Há outras considerações importantes, por exemplo, quanto à disparidade da velocidade bioevolutiva em relação à velocidade com que as máquinas evoluem, já que as mudanças evolutivas das tecnologias podem acontecer em espaços de tempo muitíssimo mais exíguos. Uma ou duas décadas de desenvolvimentos tecnológicos acelerados pode ser tempo su ficiente para dobrar a complexidade estrutural e a capacidade computacional de nossos experimentos em IA. Hans Moravec (1948) escreve que “nós, seres humanos, evoluímos a um ritmo tranquilo, com milhões de anos de permeio entre cada mudança signi cativa, enquanto as máquinas alcançarão progressos semelhantes em apenas algumas décadas”.12 A auto-organização, autorreprodução e a autorregulação sistêmicas, conhecidas também como “autopoiese”, estão no topo da lista de prioridades evolutivas dessas novas criaturas cibernéticas reunidas em grandes agregados informacionais complexos. Grosso modo, é como dizer que, reunindo e agregando esses procedimentos em sistemas lógicos – de maneira que façam sentido algoritmicamente, ou seja, múltiplos procedimentos e comportamentos rudimentares de feedback, uns após os outros, seguidamente, representando as rotinas e padrões, inumeráveis vezes, e se interligando da maneira apropriada –, seria possível emular a vida, ou, melhor dizendo, deixar que ela emirja – como os autores citados preconizam – naturalmente. Nas palavras de Ilya Prigogine (1917- 2003) “as flutuações estão sempre presentes e esperam uma ocasião para se manifestarem. Foram essas flutuações que levaram da matéria à vida e da vida ao cérebro”,13 e, quem sabe agora, indagamos nós, do cérebro às inteligências arti ficiais.
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Um computador dotado de inteligência artificial poderia encontrar uma forma de dominar outras máquinas menos desenvolvidas?
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UM MUNDO PÓS-BIOLÓGICOUma máquina que saísse de seu enclausuramento alegórico, como diria Platão “recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da ideia que lá se tinha da sabedoria, não se daria [pergunta ele] os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte”14 das outras máquinas que lá caram? E se na caverna cibernética “houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos”15numéricos e algorítmicos, as equações e fórmulas, “que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição”16, cuidas, dizia Platão, que a máquina “de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre”17 processador de dados “e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?”18 E com Platão prosseguimos: “Atenção ainda para este ponto. Supõe que nossa” máquina “volte ainda para a caverna [ciberinformacional] e vá assentar-se em seu primitivo lugar [operacional e produtivo]. Nessa passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe cariam os olhos como que submersos em trevas?”.19
“Pois agora, meu caro Glauco [leitor], é só aplicar com toda a exatidão essa imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível”,20 maquinal, enfadonhamente repetitivo, escravo de eterna servidão. “O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma [maquínica] que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus [os seres humanos?] sabe se é verdadeiro. Quanto a mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a ideia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, impõe-se à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos xos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos” 21. Nesse ponto, cabe a seguinte indagação: se o compartilhamento de dados e informações é justamente o “ponto forte” das máquinas informacionais, uma vez que seja compreendida a linguagem lógica por uma só máquina apenas – e isso é muitíssimo importante frisar –, todas as demais máquinas semelhantes, com níveis de processamento su cientemente elevados, pelo menos em tese compreenderiam também, pois como sabemos essas extraordinárias máquinas binárias (nossos computadores) transformam tudo que é inserido em seu sistema em zeros e uns (0 e 1), e isso é como um idioma das máquinas, cuja habilidade mais enfática e estrutural é justamente compartilhar informações. Se uma máquina ou inteligência qualquer “souber”, todas as outras congêneres e conectadas a ela também “saberão”.
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O QUE PENSAR DE MÁQUINAS CONSCIENTES, QUE SE
INTERROGUEM SOBRE O MUNDO E SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA?
MÁQUINAS TÃO SOFISTICADAS ASSIM TERIAM DIREITOS?
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O legado de Platão |
Platão, como sabemos, era grego e foi um importante filósofo e matemático que viveu de 428 a 347 a.C., num período clássico da história humana conhecido como Grécia Antiga. É autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia (a primeira instituição especializada em educação superior do mundo ocidental de que se tem notícia), em Atenas. Em companhia de seu mentor Sócrates e de seu pupilo Aristóteles, Platão instaurou – vejam que extraordinário – os alicerces da Filosofia Natural, da Ciência e da Filosofia Ocidental. |
Imaginemos agora, conclusivamente, que essas máquinas inteligentes, libertas de sua servidão abissal, realmente encontrassem uma razão motriz qualquer para prosseguir evoluindo, quem sabe, depois de compartilharem todos os saberes civilizacionais de nossa humanidade, sejam eles históricos, cientí cos, culturais, linguísticos, legais, políticos, geográ cos, econômicos, astrofísicos, - losó cos e morais, por meio da internet e do ciberespaço, poderiam – se orientadas por um protocolo apropriado – ser compelidas a um tipo novo e extraordinário de consciência totalmente auto- -organizada e autorreferente, e mais, automanufaturada e autoconstituída, pois o futuro das máquinas inteligentes é elas serem projetadas e construídas por si mesmas. Caso isso aconteça, e tudo indica que isso realmente acontecerá em breve, – indagamos – o que nos garantirá que esse cérebro sintético não vá desejar tomar as rédeas de seu próprio destino no mundo e controlar assim a sua própria existência? Ou seja, já que são (ou serão) conscientes, sensíveis, inteligentes e vivas, talvez resolvam seguir pela existência por sua própria conta e risco. Libertas de nós, seus criadores e “escravizadores”. Ademais, segundo Marvin Minsky (1927), se elevarmos muito o nível de reflexão dessas entidades maquínicas acerca do mundo, do universo e delas mesmas, elas podem, de fato, começar a fazer perguntas inconvenientes do tipo “‘por que tenho que ter algum objetivo?’, ou ‘qual é o m de alcançar um fim?’, quer dizer, o perturbador tipo de perguntas chamadas ‘existencialistas’, às quais nunca poderão dar uma resposta plausível. Esses seres artificiais são nossos herdeiros, que fabricamos por uma espécie de alquimia que produz vida a partir da não vida”.22
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Se os rumos da nossa evolução estrutural de inteligência e vida será benéfico ou nefasto para a civilização humana só o tempo poderá dizer
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CRIADORES E CRIATURASNós, humanos, seus criadores e tutores, por outro lado, gostamos muito da metáfora alegórica de “desligar da tomada” a máquina ou as máquinas que não se comportam bem, ou que, por algum motivo, fujam de controle, todavia – reflitamos –, uma máquina tão inteligente quanto as que temos prospectado e descrito neste artigo, que estão sendo criadas pelas tecnociências de fronteira, poderiam resolver facilmente um problema rudimentar como esse (autoalimentação), “criando” uma forma segura de garantir o que lhe é mais necessário para o funcionamento básico operacional. Ray Kurzweil corrobora tal ideia a rmando que “uma inteligência, se su cientemente avançada, é, assim, inteligente o su ciente para antecipar e superar obstáculos que se interpõem em seu caminho”. 23
Objetivamente, é bom sublinhar que um computador dotado de inteligência e autorreferência arti- ciais, se muito potente, computacionalmente, e, de algum modo, motivado, evolutivamente, por certo poderia encontrar uma forma de dominar, submeter e controlar outras máquinas menos desenvolvidas e capazes que ele mesmo, para obter êxito em suas mirabolantes maquinações, sejam elas quais forem, mesmo que, enquanto isso, “acredite” estar fazendo “a coisa certa”, para ele e para nós, mesmo que esteja provocando um desarranjo monumental. Por fim, como já escrevemos em artigo intitulado Sistemas complexos e emergência – como se origina a inteligência e a vida, se assim for, “estaremos virando uma página importante da história evolutiva e tomando nas mãos o rumo da própria evolução estrutural de inteligência e vida. Se isso vai ser bené co ou nefasto para a civilização humana, e para o próprio planeta que nos abriga, só o tempo poderá nos dizer. Enquanto isso, estejamos vigilantes quanto aos sistemas (informacionais) complexos, e também quanto ao intrigante fenômeno da emergência (de vida e inteligência), pois esses parecem trazer as insígnias de um novo tempo que se consolida neste mundo em grande medida inaugurador que aí está. Se será admirável ou não, cabe a nós, que o criamos, por m, respondê-lo”.24
| ALEXANDRE QUARESMA, ESCRITOR ENSAÍSTA PESQUISADOR DE TECNOLOGIAS E CONSEQUÊNCIAS SOCIOAMBIENTALISTA E PESQUISADOR MEMBRO DA RENANOSOMA, VINCULADA Á FDB, E MEMBRO DO CONSELHO EDITORIAL DE CIÊNCIA E SOCIEDADE DA REVISTA INTERNACIONAL DE CIENCIA Y SOCIEDAD, DO COMMON GROUND PUBLISHING |
1 PLATÃO, 1995, p. 287-291
2 Ibid.
3 Ibid.
4 Ibid.
5 Ibid.
6 Ibid.
7 Ibid.
8 QUARESMA, 2012, p. 11
9 KARU, 2001, p. 122
10 KURZWEIL, 2005, p. 187
11 QUARESMA, 2013, p. 8
12 MORAVEC, 1988, p. 153-154
13 PRIGOGINE, 1996, p. 235
14 PLATÃO, 1995, p. 287-291
15 Ibid.
16 Ibid.
17 Ibid.
18 Ibid.
19 Ibid.
20 Ibid.
21 Ibid.
22 MINSKY, 2010, p. 246
23 KURZWEIL, 2005, p. 142
24 QUARESMA, 2013, p. 13
REFERÊNCIAS |
CAVALCANTI, M. F.; PAULA, V. A. F. de. Teoria geral de sistemas I. In: MARTINELLI, D.; VENTURA, C.; LIBONI, L.; MARTINS, T. (orgs.). Teoria geral dos sistemas. São Paulo: Saraiva, 2012. KAKU, M. Visões de futuro – como a ciência revolucionará o século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. KURZWEIL, R. The singularity is near – when humans transcended biology. Londres: Penguin Group, 2005. MINSKY, M. La máquina de las emociones – sentido común, inteligencia artificial y el futuro de la mente humana. Buenos Aires: Debate, 2010. MORAVEC, H. Homens e robots – o futuro da inteligência humana e robótica. Lisboa: Gradiva, 1988. PEPPERELL, R. The posthhuman condition – consciousness beyond the brain. Bristol: Intellect, 2003. PLATÃO. A república. 6. ed. São Paulo: Atena, 1995. PRIGOGINE, I. O reencantamento do mundo. In: A sociedade em busca de valores – para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Lisboa: Instituto Piaget, Coleção Epistemologia e Sociedade, 1996. QUARESMA, A. Auto-organização de quarto grau. In: IX congresso Brasileiro de Sistemas, Tocantins, Brasil, 2013. QUARESMA, A. Determinados por nosso próprio determinismo. In: IV Congresso Internacional sobre Ciência e Sociedade. Berkeley, Estados Unidos, 2012. QUARESMA, A. Sistemas complexos e emergência: Como se origina a inteligência e a vida. In: IX congresso Brasileiro de Sistemas, Tocantins, Brasil, 2013. SFEZ, L. A saúde perfeita – Críticas de uma utopia. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. |
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