Filosofia Política: O voto afetivo


Em discussões políticas, paixões e crenças turvam os fatos, criando armadilhas para a racionalidade. Muitas de nossas "verdades" inabaláveis são apenas desejos de realidade
Por: Fabiano Sabino de Lana

O que há para além e aquém de qualquer disputa envolvendo argumentos e tentativas de convencimento, sobretudo dentro das questões políticas? O que está em jogo quando eleitores que defendem candidatos opostos tentam convencer um ao outro sobre suas posições?
O que acontece nessas situações é que nesse tipo de discussão, as armas da razão se subordinam às pré-concepções do mundo, posicionamentos anteriores, histórias de vida, contingências, convicções e, sobretudo, desejos e personalidades das pessoas envolvidas.
Vamos fazer um exercício hipotético: duas pessoas, 'a' e 'b', discutem se há ou não corrupção dentro do grupo político de um candidato à presidência. Ambas possuem convicções bastante divergentes sobre o tema. Enquanto 'a' condena o candidato, 'b' o defende. Não conseguem chegar a qualquer acordo. Enquanto 'a' apresenta manchetes de jornais com escândalos envolvendo o candidato, 'b' afirma que tais publicações não têm qualquer credibilidade.

Logo depois, 'a' lembra-se de que 'b' acreditava nos jornais quando estes denunciavam outro candidato anterior, detestado por ambos. Em resposta, 'b' afirma que os jornais entraram em decadência e pararam de noticiar fatos. Agora, agem por interesse. Para 'b', os jornais estavam certos com relação às denúncias contra o candidato anterior, mas erram se o assunto é o candidato atual.
Tanto 'a' como 'b' tentam apresentar apenas argumentos pretensamente racionais. Portam-se como se estivessem discutindo sobre fatos do mundo, não pré-convicções. Qual possibilidade de acordo em um caso como esse? Na verdade, trata-se de embate comum, cotidiano, trivial. Em tais divergências, há paixões ou busca por conhecimento? O que é determinante para 'a' pensar de uma forma e 'b' de outra? Como desempatar esse jogo?
Uma possibilidade seria isolar o que está sendo discutido entre 'a' e 'b'. Analisar o objeto em questão: a corrupção ou não no grupo do candidato ao governo.
Apostar no reducionismo e desconsiderar sujeitos em divergência. Esvaziar tais pessoas, 'a' e 'b', de predisposições ou mesmo não aceitá-las. Tentar chegar à verdade pura. Mas essa verdade que se procura, talvez, infelizmente, não seja compatível com o sujeito que a receba ou a utilize. As visões parecem ser turvadas por afetividades, predisposições e personalidade (termo que usarei para expressar o ser e todas as características). E, nas disputas políticas, os desejos e convicções das personalidades envolvidas tomam as rédeas.

Imagem: Shutterstock
Monumento do Memorial JK, em Brasília. Juscelino Kubitschek (JK), responsável pela criação de Brasília, divide com Getúlio Vargas a preferência dos brasileiros como o melhor presidente do Brasil
Podemos até rechear a nossa discussão por meio de observações fenomenológicas. Passamos por um período de eleições no Brasil. Do ponto de vista quantitativo, houve uma enorme massa supostamente alienada que precisou ser convencida por militantes, principalmente do PT, PSDB ou PV, de qual candidato seria o melhor para o futuro do País.
Podemos imaginar, esquematicamente, a seguinte discussão: o petista alegou que seu grupo fez um governo extremamente bem-sucedido e merece continuar no poder. Já o representante do PSDB disse que o governo atual foi eficiente na área econômica e social devido às decisões tomadas por seus antecessores. Além disso, o PT falharia na questão moral. O PV acredita que ambos descuidam-se da integração da população com o meio ambiente. Houve até o PSTU, entre outros, que atacaram e negaram avanços nas três propostas acima. Há em jogo centenas de outros argumentos - agressivos, persuasivos, míticos, messiânicos, técnicos ou ideológicos.


RAZÃO X PAIXÃO

Com quem está a razão? É possível isolá-la das personalidades e subjetividades de quem discute? A razão e a verdade pairam no ar de forma autônoma, independente, como esculturas a serem admiradas? Até que ponto a personalidade que discute se curva à razão ou prefere manter suas crenças enfrentando, em casos extremos, evidências do mundo?
Mesmo com advertências de filósofos como Nietzsche sobre a impossibilidade da tarefa, pode-se dizer que a tentativa de conciliação entre sujeito, mundo e as razões foi uma das obsessões teóricas do século XX. Procurou-se, exatamente, uma forma de eliminar subjetivismo e psicologismo não só da Filosofia, mas de todas as ciências sociais. Simplificando, a ideia era chegar ao "dado concreto".
Poderíamos utilizar o mundo como autoridade inapelável para a razão. Ver o que dizem os fatos. Porém, o que sabemos sobre o mundo? Como se dá a recepção das informações do mundo? Temos acesso a elas diretamente? Há tempos não acreditamos mais nessa ilusão. O dado não significaria nada puramente. Só teria sentido se apresentado a um ser humano com alguma capacidade de utilizar a linguagem para articulá-los. E nas questões políticas esses mesmos dados ainda passam por outro filtro, dos meios de comunicação.

Imagens: Agência Brasil
Dilma e Serra, candidatos à presidência. Não só fatos a respeito da vida política de cada um envolvem a disputa, mas também os afetos que despertam


Mas a suspeita é que certos pontos da personalidade, em casos limites, rejeitam até mesmo o mundo como algo normativo, independentemente do que os veículos de mídia apresentam. Ou seja, o mundo daria as cartas contanto que não fira de forma profunda a personalidade e os desejos envolvidos. Em momentos extremos, nega-se a experiência aparentemente evidente tentando reinterpretá-la por outra perspectiva.
Um exemplo retirado de casos populares: imagine que um veículo qualquer de televisão mostre um líder político popular 'f' praticando um assalto a banco. As imagens revelam 'f' retirando dinheiro de uma instituição financeira de forma violenta. Isso significa que 'f' imediatamente cairá em desgraça perante o público?
A resposta é negativa. A proteção afetiva que 'f' conquistou pode salvá-lo. Um simpatizante 'b', por exemplo, poderá dizer que as imagens são um truque. Pode alegar que é uma armação política. Irá se lembrar de que o tal veículo de comunicação tem interesses em prejudicar 'f', para ajudar 'g', por exemplo. Ou seja, 'b' estará usando todas as possibilidades de sua razão para proteger 'f'. A questão que tento mostra aqui é: o ponto inicial é a ligação afetiva de 'b' com 'f'. A razão vem depois.


Por outro lado, 'a' possui uma enorme antipatia por 'f'. As imagens, para ele, são provas de que 'f' não pode continuar mais nenhum segundo à frente de uma estrutura de poder. Acha que as imagens têm valor de verdade. Lembra que 'b' sempre acredita nas imagens quando os denunciados são os inimigos de 'f'. Mas o ponto inicial de 'a' pode ser a antipatia por 'f'.
Nesse sentido, no caso de uma discussão qualquer, procurar determinar quem está com a razão acaba se tornando um caminho cheio de armadilhas colocadas por nossas próprias personalidades afetivas. Talvez seja um paradoxo: a mesma personalidade que possibilita as razões é quem as interdita globalmente. Dito de outra forma: razão só existe por causa da personalidade. Mas é a personalidade que dará um rumo à razão, determinando qual argumento será utilizado.
Utiliza-se a razão, por exemplo, para explorar o fato de que não temos acesso direto aos meandros de um grupo político. A maioria das informações chega ao público por meio de um intermediário, a imprensa. Como podemos não saber exatamente como funciona a imprensa, atacá-la pode ser uma arma racional e eficiente para defender um ponto de vista com o qual alguém tenha ligações afetivas. Se o meio de comunicação traz informações que corroboram algo com o qual há identificação, a mensagem costuma ser aceita.

UMA SAÍDA NEGATIVA
Mas tenho preocupação em propor saídas para o impasse entre o que é o mundo, onde está a razão e a maneira como as pessoas argumentam e tentam convencer os outros do que acreditam ser a verdade. Minha tentativa de solução de conflitos passa pela proposição de uma suspensão total das premissas, uma proposta negativa que apenas esbocei no ensaio do meu livro Riobaldo agarra sua morte.
A ideia é: em toda discussão precisamos ter em mente que os nossos principais e mais fortes pontos de apoio não devem ser dogmatizados, pois podem ser consequências de uma personalidade que busca ver o mundo sempre de determinado viés e não de outro. É preciso, ainda, dar abertura para a possibilidade de erro.
A proposta (negativa) pode ser formalizada da seguinte forma: "Um lado deve abrir a possibilidade de estar errado em suas premissas. Mas o outro lado deve fazer o mesmo com relação às suas convicções". Ou então um corolário, que considera mais as perspectivas: "Um lado deve abrir a possibilidade para as premissas do outro estarem certas. Mas o outro lado deve fazer o mesmo com relação às convicções do opositor".

A proposta tem como fundo a convicção de que uma verdade inabalável pode ser apenas traço profundo de personalidade, perspectiva imóvel, ou mesmo premissa falsa pessoal ou do grupo em que vivemos e no qual compartilhamos valores. Não costumamos perceber que o inabalável pode ser limitado, falso, ou que nossas verdades são apenas desejos de realidade.
Mais do que isso, muitas vezes, razão, em vez de ser usada para se descobrir algo qualquer no mundo, na verdade, é arma para que nossas crenças não sejam abaladas. A razão torna-se uma ferramenta para reforçar nossas perspectivas e não permitir abalos contra o que desejamos.
De acordo com as minhas propostas apresentadas, não há condições de descartar nada preliminarmente, até mesmo premissas que nos desagradam profundamente. Essa suspensão não precisa ser definitiva. Mas premissas devem ser colocadas à disposição da análise do outro. A razão passa a incluir a possibilidade de se reconhecer em erro.
Tenho consciência da dificuldade dessa proposta quando aplicada ao mundo real. Por exemplo, em uma discussão com um petista, um tucano (ligado ao PSDB) precisaria deixar de lado, mesmo que provisoriamente, suas pré-concepções sobre o grupo adversário. Imaginar, por exemplo, que não tenha havido nenhuma corrupção dentro do Palácio do Planalto. Ou então que os petistas foram originais e brilhantes na condução social e econômica do País. Já o petista teria de levar em conta que o governo adversário, de Fernando Henrique Cardoso, foi o maior responsável pelo atual sucesso do governo do PT.
Enfim, talvez seja preciso levar em conta que apenas por motivos contingentes nos posicionamos de determinada maneira com relação a algum acontecimento do mundo. Poderíamos estar, se fossem outras as circunstâncias, em posição contrária.

Empatia e paixões na disputa eleitoral
O aborto, um dos focos da campanha presidencial no segundo turno, disputado pelos candidatos José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT), serve de exemplo de como a decisão política está cercada por crenças e é movida por afetos. O tema, que envolve saúde pública, religião e posicionamentos profundos sobre o que é a vida, foi usado na disputa por votos.
Prevaleceu, nas estratégias políticas, o peso dos valores religiosos e afetivos no imaginário da população. Os dois candidatos optaram por seguir o caminho apontado pelas igrejas (e pelas pesquisas qualitativas das campanhas): a promessa de manter em vigor a legislação que considera crime a prática. A decisão não foi baseada em análises racionais da questão em si, mas para agradar ao perfil dos eleitores brasileiros. De qualquer maneira, o tema "aborto" é um dos menos passíveis de análises apenas racionais.
É um exemplo do que também acontece na busca de apoio político. A terceira colocada nas eleições presidenciais de 2010, Marina Silva, que defendeu a causa da proteção do meio ambiente, teve quase 20 milhões de votos, o que surpreendeu o País. No segundo turno, as campanhas tanto de Dilma quanto de Serra tentaram convencer a ex-candidata a aliar-se a eles. Ter Marina como defensora de suas candidaturas poderia agregar valores da campanha dela ao candidato apoiado.
No entanto, nenhum dos dois candidatos foi efetivo na inserção, em seus programas de governo, dos pontos- chaves defendidos por Marina e que seriam a sustentação de suas ideias. O que era desejável era a empatia que Marina Silva despertou no eleitorado, não as supostas ações pretendidas pela candidata do PV. Tentou-se buscar o eleitor de Marina, principalmente, por meio de ligações afetivas com a candidata e não, concretamente, pela aceitação de seu programa ambientalista.

Joaquim Roriz renunciou antes de ser cassado pela Lei da Ficha Limpa, que proíbe candidatos com condenações da Justiça. Políticos perdem poder de manobra diante dos fatos
TEIAS COMUNS
Minha proposta possui, obviamente, uma pretensão ingênua. No mundo observável, parece não haver recuos à vista. Contra a maré, irei manter uma aposta no diálogo. Para isso, invocarei uma noção que chamo de sistema individual, conforme sugestão de Wittgenstein no livro Da Certeza 1.
Esse sistema pode ser conceituado como o conjunto de crenças, convicções -expressões - que formam o pensamento total de um ser humano. Parte desse sistema é herdada. Aprendemos, por exemplo, no que devemos ou não acreditar, no que daremos ou não valor, o que devemos pôr em dúvida. Wittgenstein tenta explicar sua ideia comparando-a com a educação de uma criança. Na medida em que vão crescendo, meninas e meninos aprendem a acreditar em algo e deixar outras coisas de lado, seja por convencimento ou imposição.
E essas coerções não são necessariamente justas, lógicas, coerentes ou razoáveis. Outros componentes de nosso sistema vêm de nossa personalidade singular. Da mesma forma com o que acontece com a formação das crianças, não adianta buscar coerência, justiça ou a pura razão em personalidades.

Imagem: Agência Brasil
Marina Silva foi candidata a presidente e obteve 19,6 milhões de votos. Ter seu apoio no 2° turno seria trazer para si valores atribuídos a ela, como Ética e defesa do meio ambiente
Mas é possível apresentar algumas características gerais desse sistema individual: se a pessoa 'b' afirma, em português, "eu acredito em Lula", há muita coisa que se pode dizer sobre ela. Por exemplo, que domina a língua portuguesa, que confia nos seres humanos... Pode-se dizer, com menos certeza, que tal pessoa acompanha as atividades da Presidência, que fique tocada com a imagem e as palavras do líder. Posso até dizer que essa pessoa pode conversar com alguém, um tucano, por exemplo, sobre sua crença.
As crenças do sistema de 'b', entretanto, podem estar em movimento, não são estanques. Algumas delas, periféricas, são descartadas frente à mínima contraevidência. Por exemplo, 'b' pode deixar de lado, com facilidade, a crença de que "o Big Bang é um relógio que nunca parou", ao ler uma notícia trazendo uma informação que o contradiz. Outras crenças são de forte estrutura. O exemplo óbvio é o crer em Lula, um dos núcleos de sua personalidade. Esse ponto será de difícil abalo em uma discussão política - 'b' não abre mão desse pensamento facilmente.
Cada sistema individual de 'b', por exemplo, é um conjunto de crenças, juízos e razões, todos imersos em vivências e sentimentos. As expressões, axiomas e premissas desses sistemas formam uma teia.Alguns fios dessa teia são mais grossos que outros, alguns se movem e outros são fixos. Alguns deles parecem impossíveis de serem rompidos, são insensíveis a qualquer razão e constituem o núcleo da personalidade. Posso dizer que quanto mais insensível à mudança, mais uma crença está próxima de nossa personalidade profunda, nossas premissas de vida. São pontos constituintes de nossa existência - aparentemente impermeáveis.

Imagem: Gamatrom / Wikipédia
Manifestações reúnem pessoas contra e a favor de uma causa. A verdade, que deveria unir os grupos, fica escondida por trás de convicções ligadas à personalidade de cada um
Entretanto, nenhuma teia, ou sistema, está completamente isolada das outras, nem completamente identificada. A crença de 'b' em Lula teria a ver com o aumento de salário dele e dos seus conhecidos, pode ter a ver com a melhoria nos índices sociais (racional), pode ser até pelo encanto com as falas e discursos do presidente, além de admirar sua biografia (menos racional). Pode ser o ódio ao grupo que se opõe a Lula (provavelmente irracional). A identificação profunda (menos racional) não será descartada apenas com alguns argumentos tidos como racionais.
Novamente exemplificando a partir de modelos, tentarei sintetizar uma situação hipotética entre 'a', 'b', e 'c' para explicar como funcionaria a articulação entre razões e personalidades em conflito.
Sendo 'b', por exemplo, um esportista petista e 'a', um engenheiro tucano e pouco interessado em futebol, 'b' talvez tenha mais facilidade de influenciar 'a' em uma visão sobre as vantagens e desvantagens de um esquema tático. Outra pessoa, 'c', terá pouco êxito ao tentar convencer 'a' de que os grandes edifícios de escritório só ficam de pé porque, todos os dias, algumas pessoas se benzem antes de entrar nele.
Ou seja, no primeiro caso, em um debate sobre esportes, nenhuma teia forte do sistema de 'a' foi rompida para que ele fosse influenciado por 'b'. No segundo caso, a argumentação chocou com um pilar de sua personalidade. Como engenheiro, ele identifica a razão de os prédios não caírem nas suas estruturas de concreto e aço.
Esportes e Política seriam da estrutura básica de 'b'. Suas ideias sobre essas questões são muito fortes, não são mudadas com facilidade. E quando penso em estrutura básica vejo que a noção de personalidade pode ter conexões com noções como vontade de poder de Nietzsche ou inconsciente de Freud. Mas é uma questão na qual não irei me aprofundar aqui.

Imagem: Shutterstock
Os fatos trazidos pela mídia dão margem à contestação. Se corroboram com algo desejável, são aceitos como válidos. Se afrontam convicções, são descredibilizados
AS CRENÇAS E O MUNDO
Parte razoável de crenças e juízos pode ser levada ao "tribunal da experiência" (ao mundo/aos fatos), mas nem todas, a depender do sujeito e de sua personalidade. Para certas questões, 'fatos' ou são inúteis ou eternamente interpretáveis, para não dizer manipuláveis. Por causa da sua personalidade, 'b' poderá sempre recusar ou reinterpretar certos dados, mesmo que esses mesmos dados sejam autoevidentes para outros sujeitos. E, rigorosamente, o que chega por meio de veículos de comunicação nem pode ser considerado um "fato".
Mas a questão é que o espaço da liberdade decorrente da personalidade pode, paradoxalmente, tornar-se uma prisão no sentido de uma recusa, até mesmo perpétua, do que vem do mundo. Também pode ser uma prisão no sentido de que um sujeito não pode simplesmente descartar sua personalidade, nem mesmo com doloroso esforço racional. Ademais, costuma ser característica da personalidade não ver ou ignorar o que desmonta suas crenças mais fortes. Um ponto é que quanto mais obscuras as respostas do mundo, maior espaço há para as personalidades atuarem.
Mas, por outro lado, pode-se dizer que é a personalidade que nos permite qualquer criação. O mundo só faz sentido quando o ser o transcende. O acesso ao mundo seria ao mesmo tempo empírico, conceitual, racional, afetivo e existencial. E nada disso pode ser deixado de lado em momentos em que pessoas se posicionam em situações inevitavelmente contrárias.

É famosa a batalha de Ddom Qquixote contra moinhos de vento, que ele afirmava serem gigantes, apesar das advertências feitas por seu escudeiro, Ssancho Pança. Movido por ideais apaixonados, o homem só enxerga o que quer ver
Mas o fato de termos, evidentemente, elementos racionais, garantiria preponderância da razão nas nossas escolhas, de forma independente da personalidade? A razão, como parte "natural" de nossas personalidades, irá prevalecer? E a isso se soma a utopia de que o mundo, paulatinamente, estará corrigindo nossas crenças errôneas? Acredito que não, pois outros elementos fortemente afetivos que formam nossas teias podem se antepor.
Carregada de afetividade, a personalidade do ser (que tem uma parte contingente) articula-se com as próprias contingências do mundo (que produz muitas novas convicções) para formar o sistema de cada ser humano (não necessariamente lógico ou coerente). E as razões só subsistem ou são levadas em conta quando não agridem as partes mais fortes dessa combinação. Certas teias só se movem quando sensibilizadas. As razões são utilizadas para proteger essas teias fortes.
Postulo, entretanto, uma espécie de racionalidade enfraquecida em direção à sensibilidade de entender quem é o outro de quem divergimos. O contato com a diversidade no mínimo mostra que é possível uma forma de vida distinta da nossa. Essa postulação leva em conta as dificuldades de agir racionalmente.

Seria, antes de tudo, uma decisão. Uma tentativa de pensar com a razão levando em conta até mesmo os desejos de nosso corpo - que quer poder, não diálogo, caso Nietzsche esteja certo. O desafio é pensar com consciência de nossa personalidade, algumas vezes irascível ou invencível.
As disputas sobre o mundo se misturam com divergências entre personalidades. Negar a influência da personalidade quando me posiciono sobre o mundo pode ser má-fé, no sentido de se esconder a verdade de si mesmo. Minha verdade, na verdade, é uma fé. É isso que precisamos combater quando estamos tomados, em maior ou menor grau, pela paixão política.


1. WITTGENSTEIN, Ludwig. Da Certeza. Lisboa: Edições 70, 1969.

Sobre o autor: Fabiano Sabino de Lana é formado em Comunicação Social na UFMG e em Filosofia na UnB. Já trabalhou com reportagens e atualmente atua em assessoria política e eleitoral. É autor do livro Riobaldo agarra sua morte no qual discute, entre outros temas, a relação entre jornalismo e Filosofia




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