Maquiavel, a virtù e a garantia da liberdade


Em sua obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Maquiavel influência o debate sobre o conceito de liberdade, e deixa uma questão contemporânea em aberto: como estimular a virtude cívica nos cidadãos de uma sociedade política, dado que tal virtude é pressuposto de realização da liberdade?
por Ester Gammardella Rizzi*

Nicolau Maquiavel (1469-1527), italiano de Florença, viveu durante um período conturbado da história europeia, principalmente de Roma – centro do poder italiano devido ao domínio da Igreja Católica sobre a sociedade. Nessa época, famílias, governantes, e até mesmo o papado e outros membros da Igreja, se envolviam cada vez mais em rixas por poder e dominação.

Nicolau Maquiavel (Niccolò Machiavelli, 1469-1527), autor renascentista italiano conhecido principalmente por sua obra O Príncipe (de 1513, publicado em 1532), servia à ano início do século 16. Participava ativamente e observava de perto as instituições de um poder em funcionamento. Depois de aproximadamente 14 anos de trabalho, foi afastado de suas funções públicas sob a acusação de ser um dos responsáveis pela política contrária ao governo a . Entre 1514 e 1517, afastado do exercício político, escreveu seus Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, cujo objetivo era comparar as instituições da Roma clássica com as de Florença do período. Como surgem os estados, como se mantêm e como se extinguem são os movimentos analisados nesse trabalho, que influencia até hoje as discussões sobre a virtude cívica e a garantia da liberdade.

Cidade-estado fundada em 1115 e dissolvida em 1532, a República Florentina, ou República de Florença, era governada pela Signoria, cuja cúpula era formada por nove integrantes, escolhidos entre comerciantes e artesãos e figuras destacadas de uma sociedade composta por oligarquias. Em 1429, iniciou-se o período da dinastia dos Médici – Cosme (Cosimo) de Médici (1389- 1464) à frente, seguido de outros nomes importantes como Lourenço de Médici (1449-1492). A região de Florença vivia, então, um período de esplendor intelectual e artístico.


Tendo como membros banqueiros, governantes, grão-duques e papas, a Família Médici foi uma poderosa dinastia política presente na região da Itália. Os Médici comandaram Florença e Toscana por décadas e foram financiadores de artistas, poetas, filósofos e cientistas do Renascimento. Entre aqueles que, em algum momento se beneficiaram desse mecenato, figuram Galileu Galilei, Michelangelo e Leonardo da Vinci.
A liberdade tem sido considerada um valor a ser realizado pelas sociedades políticas nas obras de diversos autores da filosofia política moderna. Thomas Hobbes, a, Jean-Jacques Rousseau e o próprio Maquiavel – entre tantos outros que trazem e atualizam o debate e a tentativa de conceituação até a contemporaneidade –, tentaram definir liberdade, tratar seus limites e as implicações de sua realização.

Se na obra O Príncipe Maquiavel parecia privilegiar, entre os bens a serem realizados por uma ordem política, a conservação e a segurança, o valor eleito pelo autor nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio parece ser a preservação da liberdade na cidade de Roma, seu modelo de organização política.

Surpreendentemente, são tumultos e conflitos entre plebe e nobres que poderiam levar à realização da liberdade na cidade: estariam na origem de boas leis. Não é, porém, para Maquiavel, qualquer tumulto capaz de gerar boas leis, mas sim os conflitos canalizados para as instituições que consigam dar vazão a esses humores sociais. A existência de formas institucionais capazes de mediar os conflitos e, ao fazê-lo, conseguir transformá-los em efetiva participação na vida pública é, assim, essencial. Sem instituições que acolham e promovam uma solução pública para os conflitos, estes podem se transformar em disputas privadas que em tudo são contrárias à virtù, que Maquiavel visa a promover.

Cidades populares x cidades aristocráticas
O povo é, ou deveria ser, o guardião da liberdade, já que é ele quem age contra uma opressão ou contra o receio de ser oprimido. Entre  e , cidades aristocráticas, e Roma, exemplo de cidade popular, que conta com a participação do povo para realização de seus projetos públicos, Maquiavel deixa evidente ao longo do livro sua predileção pelo modelo romano.
Maquiavel nos oferece duas relevantes razões de sua defesa e preferência pelas cidades populares quando comparadas às cidades aristocráticas, de porque ele acredita ser tão relevante a participação do povo na vida pública das cidades. O primeiro motivo é a importância da participação popular para a garantia de uma cidade militarmente forte e próspera. Uma população numerosa, armada, treinada para participar de guerras e defender sua cidade de seus inimigos externos é uma população que tem força para causar tumultos e reivindicar benefícios diante dos poderosos, ou seja, para atuar em seus conflitos internos.

O povo é, ou deveria ser, o guardião da liberdade, já que é ele quem age contra uma opressão ou contra o receio de ser oprimido. Entre Esparta e Veneza, cidades aristocráticas e Roma, exemplo de cidade popular, que conta com a participação do povo para realização de seus projetos públicos, Maquiavel deixa evidente ao longo do livro sua predileção pelo modelo romano.





QUEM FOI TITO LÍVIO 
Escritor, filósofo e historiador nascido por volta do ano 59 a.C., em Pádua, na região do Vêneto, Tito Lívio (Titus Livius) escreveu Ad Urbe Condita (tradução aproximada:Desde a fundação da cidade), obra monumental que reconstitui a trajetória de Roma desde a sua formação. Embora tenha se mantido afastado dos grupos literários de seu tempo, foi contemporâneo de Virgílio, Ovídio e Horácio. Tito Lívio morreu também em Pádua, no ano 17 d.C.
Outra razão, ainda mais importante, para que se estimule a participação do povo na vida pública, segundo Maquiavel, é a necessidade de confiar a ele a preservação da liberdade, já que, sendo ele o objeto privilegiado da dominação, é também o sujeito mais capaz de prevenir que ela aconteça. Ressalta o protagonismo dos muitos diante dos poucos. Algumas características devem estar presentes para que o povo funcione efetivamente como guardião: a instância última de julgamento de uma cidade, ao menos em relação à violação ou não de sua liberdade, deve ser o próprio povo, e não algum magistrado investido de poderes pessoais. Os juízes devem ser muitos nesses casos, pois os poucos tendem sempre a julgar em favor dos poucos.
Parece claro, assim, que se há uma tensão entre senado e plebe, entre muitos e poucos, entre um só e muitos no exercício do poder, tal como descrito na obra de Maquiavel, há, pelo menos em relação à preservação da liberdade, um verdadeiro protagonismo do povo em sua guarda e realização. Não há cidade forte militarmente sem povo, mas também não há cidade livre sem participação dos muitos na vida política da cidade, defendendo sua própria liberdade contra os poucos, que teriam a possibilidade de suprimi-la.

Nascido em Wrington, Inglaterra, John Locke (1632-1704) é para muitos considerado o “pai do liberalismo político”. Hoje um clássico da filosofia política – liberalismo e contratualismo –, Locke deixou ao menos duas grandes obras:Dois Tratados sobre o Governo Civil e Ensaios acerca do Entendimento Humano.
Tal participação popular traz consequências, ressaltadas na obra de Maquiavel. Não há como esperar participação política pacífica e não conflituosa. A virtude cívica implica levar a público intenções, desejos, projetos que, muitas vezes, não são consensuais. O conflito decorrente da intensa participação política do povo nos negócios da cidade, parece ter sido uma das importantes contribuições de Maquiavel às formulações dos teóricos que lhe sucederam. Os humanistas cívicos exaltavam a participação política de todos os cidadãos, mas nenhum desses pensadores chegou a refletir sobre os possíveis choques que essa participação poderia causar e seu potencial criativo e destrutivo da cidade cuja ordem política se analisava.

Maquiavel não se limita a constatar que a participação política é imprescindível para a guarda da liberdade e seu potencial conflituoso inerente. Afirma ainda que as boas leis, ou seja, as leis que garantem a liberdade, surgem exatamente desse conflito, dos tumultos, não podendo suprimi- los sem que seja suprimida a liberdade. O conflito passa a ser, assim, um elemento constitutivo fundamental a uma comunidade política que queira realizar a liberdade. Supressão do conflito gera supressão da liberdade, segundo sua visão. A partir desse pressuposto, há que se criar formas institucionais que consigam dar vazão aos conflitos sem que a comunidade
política seja posta em risco, permitindo a ampla participação popular.


O conceito de virtù e seu contrário – o povo corrompido

Nem toda participação popular, porém, pode ser considerada boa. Maquiavel descreve, em oposição àqueles que possuemvirtù – qualificada como a intenção de alcançar o bem comum – os poderosos, que, em vez de apresentarem leis em favor da liberdade e do interesse público, as formulam tendo em vista o seu próprio poder. Por que tais poderosos, porém, detinham em suas mãos a iniciativa legislativa, quando o povo deveria participar ativamente dessas formulações? Por que o povo acatava, deliberava e aceitava regras que seriam sua própria ruína, como descreve Maquiavel? Há, aqui, como tratado no item anterior, um protagonismo dos muitos diante dos poucos. Um povo cheio de virtù não se deixa governar por tiranos; um povo corrompido, por sua vez, não consegue reconhecer os benefícios de uma cidade livre. Escreve Maquiavel emDiscursos:


Gabriel Pancera é doutor 
em Filosofia, 
pesquisador e professor 
de filosofia política da Universidade 
Estadual do Oeste do Paraná.
MAQUIAVEL, O REPUBLICANO
Por ocasião do lançamento de seu livro Maquiavel entre Repúblicas (Editora UFMG, 2010), a revista Conhecimento Prático Filosofia [edição 26] conversou com o filósofo Gabriel Pancera. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em filosofia política, Pancera analisou o republicanismo e o reformismo presentes na obra do autor de O príncipe. Confira a seguir trechos da entrevista conduzida pelo jornalista Matheus Moura:Um dos seus intuitos com o livro Maquiavel entre Repúblicas é elucidar crenças e valores republicanos de Maquiavel. Explique como isso foi feito e quais os principais pontos levantados no título.

A principal questão é mostrar como o republicanismo de Maquiavel, presente já em outras obras do autor, se concretiza numa proposta de reforma constitucional, que é o Discurso. Ao verificarmos como o autor pensava na prática certas categorias formuladas abstrata e conceitualmente, podemos compreender e dar maior precisão ao sentido de suas críticas e de suas formulações. É como se o concreto lançasse luzes sobre o conceitual, iluminando-o com novos sentidos e significados. É o caso, por exemplo, dos conflitos, elemento central nas formulações maquiavelianas. Sabemos, dos Discursos, segundo o qual parte da virtude de um estado está na sua capacidade de dar soluções 

político-institucionais às inevitáveis tensões, mas não sabíamos como pensá-lo efetivamente. Lendo 
o Discurso sobre as formas de governo, vemos como Maquiavel imagina que isso pudesse acontecer, 
pois ali ele formula uma proposta de reforma da forma de governo, que procura incorporar tais conflitos. 
Assim, ao retornarmos para as obras anteriores, conseguimos melhor compreender essa questão. 
E esse é apenas um caso.

No desenvolvimento do livro, foram usadas outras obras de Maquiavel, como O Príncipe 

e Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, para norteá-lo nas elucidações quanto 
ao pensamento republicano de Maquiavel. Pode-se dizer que Maquiavel explica 
Maquiavel? Por quê?

As pessoas em geral nutrem uma visão de Maquiavel como um autor maquiavélico. Não, ele não é 

bem isso. Ele é, sim, um estudioso da política, do campo da política. Está preocupado em desvendar 
seus mecanismos, compreender a realidade que o circundava e pensar em caminhos e soluções para 
os impasses de sua época. É dessa perspectiva que olha para esse objeto do mundo humano. 
Mas não se pode reduzir seu pensamento ao Príncipe, obra com base na qual, muitas vezes, 
Maquiavel foi lido como um maquiavélico. Não, não se deve reduzir seu pensamento a essa obra, 
pois parte importante é encontrado nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, lugar onde 
o autor se mostra claramente republicano, um autor defensor da vida ativa, dos valores cívicos, mas, 
sobretudo, um pensador de grande estatura, que formula e mobiliza um vigoroso aparato conceitual 
para compreender o universo da política e pensar possíveis alternativas para seus impasses. 
O esforço do pensador florentino fica claro no opúsculo examinado no livro Maquiavel entre Repúblicas, 
pois, para pensar a reforma constitucional de sua cidade, o autor pressupõe tudo o que 
tinha sido formulado anteriormente. Mas com a vantagem de apresentar os mesmos temas de 
maneira sintética e bastante articulada.

Como pode ser feita a aproximação do pensamento maquiavélico com 

o comportamento político contemporâneo dentro do conceito de 
bom governo e republicanismo?

Parece-me que as principais lições a serem aprendidas com Maquiavel têm a ver com o cultivo 

e a valorização da vida e das virtudes cívicas, e também com a compreensão da política como 
um lugar de solução de conflitos e construção de um espaço comum, capaz de vincular os homens. 
Os dois aspectos mostram- se, aliás, como crítica e alternativa para a sociedade individualista 
e de massa em que atualmente nos encontramos, caracterizada pelo isolamento, egoísmo e 
apatia das pessoas relativa às coisas que são comuns a todos e sobre as quais temos, 
queiramos ou não, responsabilidade.





Cidade localizada na Grécia, Esparta foi uma das principais cidades-estado da Grécia Antiga (ou Grécia Clássica). Com fortes caracteristicas bélicas, Esparta manteve relações tensas com Atenas, que culminariam com a Guerra do Peloponeso ocorrida entre 431 e 404 a.C., vencida pela Liga do Peloponeso (com Esparta na linha de frente) e cuja história foi relatada nos escritos de Xenofonte e Tucídides.


A Sereníssima República de Veneza, com a capital situada na bela Veneza, vigorou de 697, quando se desligaram do Império Bizantino, em 1797, quando fora invadida pelo Exército de Napoleão Bonaparte. Atualmente a cidade de Veneza é um dos cartões-postais da Itália e um dos grandes pontos turísticos da Europa.
LIVROS SOBRE MAQUIAVEL

O Príncipe de Maquiavel, uma Interpretação Moderna e Prática
(Saraiva, 2010) Tim Philips

Maquiavel, um Homem Incompreendido (Record, 2007) Michael White

Maquiavel & O Príncipe (Zahar, 2004) Alessandro Pinzani

Maquiavel (Zahar, 2003) Newton Bignotto

Maquiavel, Política e Retórica
(UFMG, 2009) Helton Adverse

A pena do florentino
Além de Discursos sobre as Primeiras Décadas de Tito Livio,Nicolau Maquiavel produziu uma obra considerável, que abrange os campos da filosofia, da estratégia política, da história, do teatro e da literatura. O Príncipe é seu livro mais lido e influente, sendo mencionado em cursos de ciências sociais (disciplina de filosofia política), filosofia, história, psicologia e administração. No entanto, o notável florentino escreveu, entre outros, a peça de teatro A Mandrágora. Escrita em 1503 e tornada pública apenas em 1524, A Mandrágora é considerada um dos melhores textos da dramaturgia de todos os tempos.

Tais foram, portanto, o início e o fim da lei agrária. E embora tivéssemos mostrado alhures como as inimizades, em Roma, entre o senado e a plebe, mantiveram a cidade livre, visto que delas nasciam as leis favoráveis à liberdade, parecendo, pois, desconforme com tal conclusão o resultado dessa lei agrária, digo que nem por isso renuncio a tal opinião: porque é tão grande a ambição dos grandes que, se não sofrer oposição por várias vias e de vários modos numa cidade, logo a levará à ruína. De modo que, embora o con¤ ito da lei agrária tenha demorado trezentos anos para acarretar a servidão de Roma, isso teria ocorrido muito mais cedo caso a plebe, seja com essa lei, seja com outros desejos seus, não tivesse refreado a ambição dos nobres. Vê-se também por aí como os homens estimam mais o patrimônio que as honras. Porque a nobreza romana sempre cedeu à plebe sem excessivos [straordinari] tumultos quando o assunto eram honras, mas quando se tratou do patrimônio, foi tão grande sua obstinação na defesa deste que a plebe, para saciar seu apetite, recorreu aos meios extraordinários que acima falamos.
Só a virtù do povo, ou seja, só a participação de todos na vida política da cidade, tendo em vista o bem comum e a preservação da liberdade de todos, é que pode manter a cidade a salvo de sua apropriação por interesses privados. A corrupção, entendida como a falta de capacidade de se dedicar energia ao bem comum, priorizando interesses privados em detrimento de interesses da coletividade, tem sua origem, segundo Maquiavel, na desigualdade existente na cidade.
Maquiavel não se limita a constatar que a participação política é imprescindível para a guarda da liberdade e seu potencial conflituoso inerente. Afirma ainda que as boas leis, ou seja, as leis que garantem a liberdade, surgem exatamente desse conflito, dos tumultos, não podendo suprimi-los sem que seja suprimida a liberdade.
Assim, a não realização da liberdade e inaptidão para a vida livre estão diretamente relacionadas a uma intensa desigualdade existente, levando- nos a crer que igualdade e liberdade se aproximam. Seria possível, então, entender que os conflitos tratados nos primeiros capítulos do livro seriam conflitos que, além de reivindicarem a garantia e a preservação da liberdade, relacionavam-se também com uma ânsia de realização da igualdade? Uma igualdade que, por sua vez, estivesse menos relacionada com as honras do que com as propriedades distribuídas desigualmente entre os membros da comunidade?
À parte essas hipóteses dificilmente verificáveis nos limites deste artigo, impossível não reconhecer haver uma conexão entre a virtù do povo e a virtù dos governantes, tal como Maquiavel descreve. Magistratura cheia de virtù e povo participativo e atento; magistratura permeada por interesses privados e povo corrompido, parecem ser relações constatáveis com base no texto de Maquiavel.

Como evitar a corrupção e estimular a virtù?
Apresentadas as relações que Maquiavel estabelece entre participação popular, virtù, e garantia do respeito à liberdade, resta uma pergunta: se são a participação e a virtùtão fundamentais para a realização da liberdade e para impedir que a comunidade política se corrompa, como estimulá- las em seus cidadãos?

Provavelmente ele acreditava que, ao escrever seu livro, estaria estimulando esse valor nos outros cidadãos de Florença. Mas a questão se coloca tal como antes: como estimular a virtù em todo um povo, para não permitir que uma república, que uma cidade seja corrompida? Há um meio de estimular os cidadãos pelas leis da própria república? Maquiavel esboça duas possíveis respostas de como estimular a virtù nos cidadãos de uma cidade. O primeiro modo é mediante a educação voltada à participação na vida pública. O segundo modo é estimular os cidadãos por meio de exemplos: grandes homens virtuosos poderiam ser modelos a serem seguidos pelos povos que eles pretendem (re)ordenar. Os grandes exemplos históricos também podem cumprir esse papel.
Saber qual a forma de estimular a virtù, a participação do povo na vida pública das cidades e das sociedades, no entanto, é uma importante questão que não é completamente resolvida na obra de Maquiavel.
Autores republicanos contemporâneos reconhecem, com base na referência de Maquiavel, a imperatividade do exercício da virtude cívica para a realização dos valores republicanos, notadamente para a garantia da liberdade. Virtude cívica, comunidade política e garantia da liberdade dos cidadãos na vida em sociedade, constituída pela sociedade política e suas instituições estão, ainda contemporaneamente, indissociáveis.
Já que a participação política, o exercício da virtù tal como descrita por Maquiavel, é pressuposto do exercício do poder, não deveríamos estar preocupados em avançar mais um passo e responder à desconfortável pergunta: como o sistema político pode estimular a participação política de seus cidadãos? Por meio de leis que os obriguem a participar? Não seria essa, no entanto, uma forma de restringir a própria liberdade que se quer alcançar?
Bem ou mal resolvida, a virtude cívica é, certamente, um dos componentes que compõem a noção de liberdade tal como concebida pela tradição de filosofia política chamada republicana, bastante presente nos debates contemporâneos. Tal característica, por sua vez, deve boa parte de sua origem teórica à obra Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio.

Texto retirado da Revista Filosofia: Conhecimento Prático - Editora Escola



0 comentários: