O pensador francês Michel Maff esoli (1944) considera que o fator que torna as multidões contemporâneas misteriosas e, sob muitos aspectos, anômicas, é que elas são inalcançáveis, pois estão sempre em caminho rumo a alguma coisa que o funcionalismo econômico tem dificuldade de dominar². Decorre dessa característica a dificuldade de burocratização política desses grupos de contestação e transformação social e, simultaneamente, de se saber qual o espectro político que seguem. A Multidão evidencia a crise da representação política em um momento histórico no qual as legendas políticas se afastaram das suas propostas fundamentais, dissolvendo-se em uma massa informe regida pelas negociatas e desejo de manutenção do poder acima de tudo.
Assim como o indivíduo consciente do seu poder singular perante os ditames da padronização do gosto social é capaz de lutar contra essas determinações alienantes, a coletividade social se une em prol da ampliação da qualidade de vida e da afirmação dos seus direitos políticos perante uma realidade social que se caracteriza justamente pelo vazio do espectro político. Por isso uma revolução se faz não com palavras de ordem, mas com ações efetivas que promovam a transformação da situação de opressão na qual se vive. Diz-se que antes de mudar as coisas é preciso que se mude interiormente, mas quem reconhece a necessidade de mudança social já se modificou interiormente, pois a constatação da contradição da realidade exerce no sujeito imbuído de senso crítico a aspiração por reforma social. Para Frantz Fanon (1925-1961), politizar as massas não é, não pode ser, fazer um discurso político. É dedicar-se obstinadamente a fazer com que as massas compreendam que tudo depende delas, que se estagnamos é por sua culpa e que se avançamos também é por sua culpa, que não há demiurgo, não há homem ilustre e responsável por tudo, mas que o demiurgo é o povo e que as mãos são apenas, definitivamente, as mãos do povo³.
A violência da polícia representa a desumanização do Estado; a violência da Multidão representa o processo de supressão da alienação e o reconhecimento de sua condição humana. A violência deve ser bilateral, somente quando a Multidão de fato lutar contra a opressão do Estado ela vai concretizar seus objetivos libertários. Nessas circunstâncias não é a destruição do patrimônio público que promoverá a transformação social, mas a resistência efetiva contra a violência policial que atua em nome do Estado. O órgão público que mais deveria zelar pela paz social é aquele que, pelo contrário, mais favorece a perpetuação do mal-estar coletivo: a polícia, representante do infame aparelho repressivo do Estado na definição proposta por Louis Althusser (1918-1990). Em vez de promover a cidadania, o autoritarismo fascista das forças policiais triunfa sobre a ordem civil impondo dor e humilhação para todos aqueles que estão desamparados politicamente perante a arbitrariedade do poder estabelecido em conluio com os detentores dos meios de produção. Conforme argumenta o filósofo Axel Honneth (1949), os maus-tratos físicos de um sujeito representam um todo de desrespeito que fere duradouramente a confiança, aprendida através do amor, na capacidade de coordenação autônoma do próprio corpo; daí a consequência ser talvez, com efeito, uma perda de confiança em si e no mundo, que se estende até as camadas corporais do reconhecimento prático com outros sujeitos, emparelhados com uma espécie de vergonha social4.
O poder de violência deve estar com a Multidão, e a expressão da violência popular se caracteriza como a negação das forças que nos são antagônicas; o amor talvez assimile tudo, mas isso só faz sentido numa visão romântica, idílica. O Estado esmaga o oprimido de fato e de forma simbólica, e nós aplaudimos essa opressão. Agora que está havendo a reação contra os que oprimem, não podemos frear a expressão desse poder de transformação, que é também de destruição. Mesmo a vida em sua estrutura microcósmica se caracteriza pela apropriação, pela destruição. Todos os autênticos movimentos revolucionários da história da humanidade se pautaram na luta de morte contra as estruturas do poder normativo (Revolução Francesa, Revolução Haitiana, Revolução Russa, Revolução Cubana). Séculos de opressão de uma elite no poder. Quando a multidão conseguiu se libertar dessa dominação, o discurso reacionário pede moderação? Ora, nada de moderação, pois a opressão hegemônica do Estado contra os oprimidos nunca foi moderada. A história do Estado é a história da opressão da elite detentora do poder material sobre os subalternos. Conforme aponta Walter Benjamin (1892-1940), a afirmação de que os fins da violência policial seriam sempre idênticos aos do reino do Direito, ou pelo menos teriam relação com estes, é inteiramente falsa. Pelo contrário, o "Direito" da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja por causa das conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ela deseja alcançar a qualquer preço5. O Estado, em vez de promover a regulação dos conflitos sociais, apenas referenda a opressão da elite sobre os desprovidos dos meios de produção e sobre todos aqueles que contestam as suas arbitrariedades legitimadas juridicamente. Conforme argumenta o sociólogo francês Löic Wacquant (1960), essa violência policial se inscreve em uma tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição originada da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta contra a "subversão interna" se disfarçava em repressão aos delinquentes6.
6 WACQUANT, As prisões da miséria, p. 11.
A SOCIEDADE EXCLUDENTE DO REGIME CAPITALISTA NÃO VISA ESTABELECER A JUSTIÇA SOCIAL, MAS SIM EFETIVAR MEIOS PRÁTICOS DE SE PROVOCAR CISÕES SOCIAIS
A COMUNA de Paris foi o primeiro governo operário da história. se consolidou com uma revolta ocorrida em 1871, na qual os trabalhadores resistiriam e governariam a cidade por cerca de três meses, na experiência que Karl Marx denominou de "assalto aos céus", até que cerca de 30.000 cidadãos foram massacrados pelo exército francês
HIGIENIZAÇÃO SOCIAL
Um dos sintomas mais vilipendiosos do moderno processo de constituição espacial da elite da sociedade industrial se constituiu através da progressiva gentrificação territorial, isto é, a expulsão dos moradores economicamente desfavorecidos das áreas de intervenção urbana regida pela anuência do Estado autoritário; esses espaços remodelados passam então a receber moradores mais abastados ou funções sociais mais sofisticadas do ponto de vista da sociedade de consumo. A forma extrema da gestão punitiva da pobreza não consiste em suprimi-la pela eliminação física dos miseráveis? Grande parte das aglomerações das comunidades periféricas, favelas e guetos surgiu justamente da expulsão dos agrupamentos humanos de locais que, antes alheios aos interesses econômicos dos donos do poder, se tornam objetos de sua cobiça infame. A sociedade excludente do regime capitalista não visa estabelecer a justiça social, mas sim efetivar meios práticos de se provocar cisões sociais que legitimem a aplicação da repressão oficial contra os desfavorecidos materialmente e todos aqueles que lutam pela efetivação da justiça social. Os versos da Internacional Socialista retratam com precisão essa questão: "O crime de rico, a lei o cobre/O Estado esmaga o oprimido/Não há direitos para o pobre/ Ao rico tudo é permitido/À opressão não mais sujeitos/Somos iguais todos os seres/ Não mais deveres sem direitos/Não mais direitos sem deveres".
Multidão, povo, massa
"A multidão desafia qualquer representação por se tratar de uma multiplicidade incomensurável. o povo é sempre representado como unidade, ao passo que a multidão não é representável, ela apresenta sua face monstruosa vis-à-vis os racionalismos teleológicos e transcendentais da modernidade. Ao contrário do conceito de povo, o conceito de multidão é de uma multiplicidade singular, um universal concreto. o povo constitui um corpo social; a multidão não, porque a multidão, é a carne da vida. se por um lado opusermos multidão a povo, devemos também contrastá-la com as massas e a plebe. Massas e plebe são palavras que têm sido frequentemente empregadas para nomear uma força social irracional e passiva, violenta e perigosa que, justamente por isso, é facilmente manipulável." negri, Antonio. "para uma definição ontológica da Multidão" in. lugar comum 19-20, 2004 p.15-26. |
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A violência cometida por uma minoria de pessoas em grandes manifestações coletivas é imputada como vandalismo pelo discurso oficial do Estado e pelos aparatos midiáticos submissos ao poder dominante |
A massa humana confinada em seu espaço de exclusão social, desprovida de sua cidadania, sequer pode lutar adequadamente por seus direitos políticos, tornando- se assim um mero dado estatístico para as estruturas repressivas da sociedade moderna e suas hierarquizações plutocráticas. Para Marilena Chaui (1941), conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como "cultura senhorial", a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade7.
A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA
Interessante destacar que a violência de dez, vinte pessoas em grandes manifestações coletivas é imputada como vandalismo pelo discurso oficial do Estado e pelos aparatos midiáticos submissos ao poder dominante. Se porventura milhares de cidadãos insatisfeitos pegarem em armas e lutarem corajosamente contra a opressão do Estado em nome dessa causa justa, a palavra mudará. Será chamada de construção de uma nova era na expe riência política. Nesse contexto, os comentários a seguir de Karl Marx (1818-1883) sobre a mobilização popular da Comuna de Paris (1871) revelam-se maravilhosamente contextualizáveis para a questão tratada: "Se os atos dos trabalhadores de Paris foram de vandalismo, era o vandalismo da defesa em desespero, não o vandalismo do triunfo, como aquele que os cristãos perpetraram ao destruir os inestimáveis tesouros artísticos da Antiguidade pagã; e mesmo esse vandalismo foi justificado pelos historiadores como inevitável e insignificante se comparado à luta titânica entre uma sociedade nova a surgir e uma sociedade velha a se despedaçar. E ainda menos que o vandalismo de Haussmann, que arrasou a Paris histórica para dar lugar à Paris do turista!"8. Nada muito distante de nossa atual conjuntura histórica, cidadãos desalojados de suas residências em prol da especulação imobiliária perpetrada por empresários inescrupulosos associados ao poder estabelecido. Tudo em nome do "progresso da cidade", conforme a ideologia oficial apregoa. Nessas condições, quem é o verdadeiro vândalo?
É imprescindível que se combata o fascismo do Estado autoritário-plutocrático, detentor do monopólio legítimo da violência. Precisamos acabar com o contrato social burguês e instaurar uma nova forma de política em que as castas espoliadoras do bem público encontrem-se radicalmente afastadas do poder. Conforme afirma Frantz Fanon (1925-1961), só a violência exercida pelo povo, violência organizada e esclarecida pela direção, permite às massas decifrarem a realidade social e lhe dá a sua chave. Sem essa luta, sem esse conhecimento na práxis, só há carnaval e fanfarras.9 Em toda opressão já existe a semente da luta contra a hegemônica. Mas o fetiche do capital anestesia todas as dores do mundo e o ímpeto de contestação radical do sistema através da espetacularização da política. Muitos manifestantes fazem de sua participação nas mobilizações populares uma espécie de diversão; tanto pior, indivíduos alienados posam para fotos com os instrumentos da repressão do Estado como se estes fossem atrações turísticas. Podemos afirmar que, assim como quem consome produtos manufaturados por trabalhadores que laboram em condições precárias é moralmente responsável pela manutenção desse sistema espoliador, também aqueles que pagam quantias elevadas para assistir jogos de futebol de torneios concretizados através da corrupção das corporações esportivas e das estruturas governamentais são culpados por tal situação. O futebol se torna a culminação da alienação popular brasileira, de modo que a colocação de Étienne de La Boétie (1530-1563) se revela absolutamente extratemporal e pertinente: "Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, as feras exóticas, as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão, o preço da liberdade que perdiam, as ferramentas da tirania. Desse meio, dessa prática, desses engodos se serviam os antigos tiranos para adormecerem os súditos sob o jugo"10.
8 MARX, A guerra civil na França, p. 76-77.
9 FANON, Os condenados da Terra, p. 171.
O DISCURSO DA NÃO VIOLÊNCIA SE CARACTERIZA COMO UMA IDEOLOGIA QUE VISA MANTER A POPULAÇÃO PASSIVA PERANTE AS FORMAS DE VIOLÊNCIA DO SISTEMA VIGENTE
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Você compraria produtos ou serviços de uma empresa que utiliza mão de obra escrava ou trabalho infantil? |
Na confluência da organização popular contra a opressão do Estado legitimador dos interesses plutocráticos, o discurso da não reação e da não violência se caracteriza como um discurso ideológico que visa apenas manter a população em estado de passividade perante todas as formas de violência praticadas pelo sistema vigente contra o interesse coletivo. Se em nome da paz e da ordem é necessário viver subjugado na lama da humilhação, "paz" e "ordem" se revelam palavras terríveis. Conforme argumenta Henry David Th oreau (1817- 1862), "todos os homens reconhecem o direito de revolução; isto é, o direito de recusar obediência ao governo, e de resistir a ele, quando sua tirania ou sua ineficiência são grandes e intoleráveis [...] Em um governo que aprisiona qualquer um injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo é também a prisão"11.
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A cerimônia de encerramento da Copa das Confederações foi cenário de protestos não apenas do lado de fora do Maracanã, mas também dentro do estádio |
COMBATE À DEMOCRACIA FASCISTA
Uma saída viável contra a barbárie tecnocrática que se encontra associada ao Estado normativo, detentor do monopólio legítimo da violência e que legisla em nome das classes empresariais e dos especuladores financeiros, encontra-se na tomada das ruas como manifestação impressionante de seu poder e, em seguida, na composição de quadros políticos que efetivamente representem o povo, suprimindo-se assim da agenda política os marcos infelizes que legislam em causa própria. Os movimentos contra hegemônicos no combate radical ao fascismo instituído travestido de Estado democrático nascem do despertar de uma inteligência coletiva que agrega os corpos políticos em uma multidão capaz de destruir as bases corruptas do poder oficial. A violência empregada pela multidão na sua luta por cidadania é fruto de seu amor ao existir, e não é possível concebermos uma atitude revolucionária desprovida da força transformadora que se utiliza de meios violentos para fazer valer seu reconhecimento como ser humano. Paulo Freire (1921-1997) expressa de maneira precisa essa questão ao enfatizar que, na verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dos oprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar o gesto de amor. Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, esse ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor. Enquanto a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de ser, a resposta destes à violência daqueles se encontra infundida do anseio de busca do direito de ser. Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua "generosidade", são sempre os oprimidos, que eles jamais obviamente chamam de oprimidos, mas, conforme me situem, interna ou externamente, de "essa gente" ou de "essa massa cega e invejosa", ou de "selvagens", ou de "nativos", ou de "subversivos", são sempre os oprimidos os que desamam. São sempre eles os "violentos", os "bárbaros" os "malvados", os "ferozes" quando reagem à violência dos opressores12.
O discurso da não violência corre o risco de legitimar a perpetuação da opressão e abuso do poder militar sobre a Multidão quando esta aceita docilmente a violência sem reagir. A superação das contradições impostas pelo Estado repressor sobre as aspirações de cidadania da Multidão será conquistada pela apropriação da violência por esses grupos que emergem de todos os lados visando fazer valer seus direitos desapropriados paulatinamente pelos espoliadores chancelados pelo poder do capital.
REFERÊNCIAS
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BENJAMIN, W. para uma crítica da violência. trad. de ernani chaves. in: Escritos sobre mito e linguagem. são paulo: ed. 34/duas cidades, 2011, p. 121-156.
CHAUI, M. Brasil - mito fundador e sociedade autoritária. são paulo: fundação perseu Abramo, 2007.
FANON, f. Os condenados da Terra. trad. de enilce Albergaria rocha e lucy Magalhães. Juiz de fora: ed. ufJf, 2010.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. rio de Janeiro: paz e terra, 2005.
HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. guerra e democracia na era do império. trad. de clóvis Marques. são paulo: record, 2005.
HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. trad. de luiz repa. são paulo: ed. 34, 2009.
LA BOÉTIE, É. Discurso sobre a servidão voluntária. trad. de Manuel José gomes. lisboa: Antígona, 1997.
MAFFESOLI, M. Sobre o nomadismo - vagabundagens pós-modernas. trad. de Marcos de castro. rio de Janeiro: record, 2001.
MARX, K. A guerra civil na França. trad. de rubens enderle. são paulo: Boitempo, 2011.
THOREAU, H. D. A desobediência civil. são paulo: penguin classics e companhia das letras, 2012.
WACQUANT, L. As prisões da miséria. trad. de André telles e Maria luiza X. de Borges. rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
Texto Retirado da Revista Filosofia Ciência & Vida
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