Solidão do conhecimento

Os enfrentamentos para quem pensa filosoficamente

POR TATIANA MARTINS ALMÉRI*

Preconceitos, mal-entendidos, interpretações dúbias, subentendimento, ambiguidade... Quem nunca passou por uma situação dessa complexidade? Se refletirmos a fundo, o que se apresenta banal a alguns, muitas vezes é complexo e incompreensível a outros. Assim nada passa a ser tão simples e evidente como achamos. Discutir filosoficamente, falar sobre Filosofia ou, quem sabe, chegar ao extremo de apresentar-se como profissão: filósofo, é algo que se chama atualmente de enfrentar o INEXTRICÁVEL.
Algo embaraçoso? Muito mais do que isso, pode ser visto até como enfrentar um preconceito social, tamanho é o desentendimento e a falta de informação da sociedade com relação a essa profissão. A busca aqui é tentar acabar com o obscurantismo, é como filosoficamente Descartes discutia: tentar desvendar os olhos de quem “passa a vida de olhos fechados sem jamais procurar abrilos”, clarear o pensamento de pessoas que acabam se tornando cegas voluntariamente, à mercê das ilusões propagadas de geração para geração e das manipulações sistemáticas. E é nesta semântica que se concretiza as duas grandes atitudes do erro: a prevenção e a precipitação.
A prevenção “é a facilidade com que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões e ideias alheias, sem se preocupar em verificar se são ou não verdadeiras. São as opiniões que se cristalizam em nós sob a forma de preconceitos (colocados em nós por pais, professores, livros, autoridades) e que escravizam nosso pensamento, impedindo-nos de pensar e de investigar. Já a precipitação, corresponde à facilidade e à velocidade com que nossa vontade nos faz emitir juízos sobre as coisas antes de verificarmos se nossas ideias são ou não são verdadeiras. São opiniões que emitimos em consequência de nossa vontade ser mais forte e poderosa do que nosso intelecto. Originam-se no conhecimento sensível, na imaginação, na linguagem e na memória.” (DESCARTES apud CHAUÍ, 2003, p. 127).
Preconceito
“Há diversas complicações inerentes ao conceito de preconceito. Uma delas se refere a que o indivíduo preconceituoso tende a desenvolver preconceitos em relação a diversos objetos – ao judeu, ao negro, ao homossexual, etc. -, o que já indica uma forma de atuação desenvolvida por ele de certa maneira independente das características dos objetos alvos do preconceito, que são distintos entre si. Isto mostra que o preconceito diz mais respeito às necessidades do preconceituoso do que às características de seus objetos, pois cada um desses é imaginariamente dotado de aspectos distintos daquilo que eles são.” (CROCHIK, 2006, p. 13-14)
Esses impulsionamentos possibilitam a grande abertura à existência do preconceito, ao conhecimento sensível, porém, esse só será combatido pelo conhecimento verdadeiro, o qual, para Descartes, se possibilitará na busca pelo conhecimento puramente intelectual. Entretanto, para tal, é necessário um “Incansável trabalho de distanciamento reflexivo, a análise filosófica exige colocar nosso espírito ‘à espreita’, atento àquilo que lhe é apresentado para exame e também pronto a discernir seus próprios subentendidos.” (ARONDEL-ROHAUT, 2005, p. 6). Certamente o oposto disso ocorre quando o preconceito permeia pensamentos e atitudes.
O conceito de preconceito não está inserido simplesmente em uma discussão específica ou em uma ciência única. O preconceito, além de estar no âmago psicológico e se apresentar como uma construção sociológica também traz construções diferenciadas a cada contexto preconceituoso.
No contexto psicológico, partindo do cerne do indivíduo, não seria possível a existência das interioridades caso essa não se contraponha à exterioridade, mas não simplesmente se contrapondo e sim “uma interioridade que surge a partir desse mesmo exterior, o que implica que o indivíduo é produto da cultura, mas dela se diferencia por sua singularidade. Quando o indivíduo não pode dela se diferenciar, por demasia identificação, torna-se o seu reprodutor, sem representar ou expressar críticas que permitiriam modificá-la; se o indivíduo somente se contrapõe a ela, não se reconhecendo nela, coloca a própria possibilidade da cultura em risco.” (CROCHIK, 2006, p. 15)

O preconceito é um mecanismo muitas vezes desenvolvido pelos indivíduos na busca da dicotomia e na diferenciação entre o bem e o mal, ou até mesmo que se apresente aos que se defendem de ameaças imaginárias, bloqueando a visão da realidade, tornado- a falsa ou deficitária por algo que lhes foi impedido de enxergar ou que contém elementos que gostariam de ser ou ter para si mas que se veem obrigados a não ser ou ter. (FREUD apud CHAUÍ, 2003)

Profissões excluídas
“Na relação entre a identificação de características do preconceituoso e a diversidade de conteúdos que percebe em suas vítimas, apresenta-se na base, a relação entre indivíduo e sociedade. Isto porque a fixidez de um mesmo tipo de comportamento se relaciona com estereótipos oriundos da cultura, que embora se diferenciem em diversos objetos que tentam expressar, não se confundem com eles; é dizer: à diversidade com que a roupagem dos estereótipos culturais reveste os seus objetos, corresponde a uma fixidez de comportamento no preconceituoso. Essa relação não é direta, pois o indivíduo se apropria dos estereótipos e os modifica de acordo com as suas necessidades; contudo, as ideias sobre o objeto do preconceito não surgem do nada, mas da própria cultura.” (CROCHIK, 2006, p. 14).
Entretanto, no contexto da formação de grupo e nos posicionamentos históricos e culturais não se pode trazer contratempos e afirmações a respostas sociológicas não plausíveis com um Determinismo Geográfico, afinal, o local que estamos inseridos não determina a maneira que somos, assim, a cultura daquele local pode simplesmente INFLUENCIAR o modo de agirmos e pensarmos. É nesse parâmetro que os conceitos formados socialmente podem ser respondidos de uma maneira exclusiva e problemática socialmente; é nessa influência de formação cultural que muitas vezes ocorrem frutos preconceituosos que podem ser passados de geração para geração, ou até, pensando em um patamar positivo, combatidos após alguma transformação reflexiva. Porém, ainda não é o que ocorre com relação aos preconceitos aos que pensam filosoficamente.
Por fim, posteriormente aos apontamentos psicológicos e sociológicos, até o conteúdo do preconceito se diferencia de objeto para objeto, o que acaba tornando difícil a concretização do conceito como algo objetivo e exato. Portanto, as maneiras que se enxergam os que sofrem preconceitos se diferenciam entre os tipos de preconceitos e de preconceituosos: o que os preconceituosos percebem no deficiente físico não é o mesmo que percebem nos negros, nos judeus, nos “catadores de lixo”, em profissões excluídas socialmente, nas mulheres, etc.
Mais precisamente com relação a algumas profissões excluídas socialmente, portanto suscetíveis a preconceitos, os filósofos atualmente são pessoas que muitas vezes são taxadas à realização de simplesmente NADA. Isso porque, no mundo fordista que vivemos, o que se fundamenta nas explicações do materialismo histórico definido por Karl Marx, fazer algo que possua valor social é elaborar coisas materiais, algum elemento concreto, que tenha valor de troca, que seja palpável, um objeto em si, algo que se concretize, o que normalmente não está no dia a dia da realização dos filósofos, os quais têm como base principal e fundamental a reflexão, algo impalpável, e certamente por ser impalpável que muitas vezes é taxada como desnecessária, sem valor e incabível, assim com dizem popularmente: o Ócio – com a significância do senso comum.
Materialismo Histórico
As relações de classe estão pautadas pelas forças produtivas e consequentemente pelos modos de produção, o que acaba consolidando as relações capitalistas. “0 modo de produção feudal é o fato positivo, a afirmação, mas já traz dentro de si o germe de sua própria negação: o desenvolvimento de suas forças produtivas propicia o surgimento da burguesia. À medida que estas forças produtivas se desenvolvem, elas vão negando as relações feudais de produção e introduzindo as relações capitalistas de produção. A luta entre a nobreza e a burguesia vai se acirrando; em um determinado ponto deste desenvolvimento ocorre a ruptura e aparece o terceiro elemento mais desenvolvido, que é modo de produção capitalista. É, portanto, a luta entre as classes que faz mover a História.’’ (SPINDEL, A. 1987, p. 39.)
Neste contexto fordista, as dúvidas, as indagações e os questionamentos não são bem vistos, pelo contrário, trazem margem ao erro. E é neste contexto que se promove o preconceito da não coisificação instantânea do pensamento.
Grande paradoxo do destino dos preconceituosos... Filosofar é exatamente duvidar, contradizer, discutir, refletir na tentativa de buscar uma maior proximidade à realidade límpida, colocando à prova os patamares impostos socialmente, bloqueando as submissões, os abusos, as atrocidades aceitas socialmente. Portanto, quanto mais preconceito ao âmago filosófico, mais condenado está a se submeter ao topo da hierarquia social. Afinal, atualmente para se diferenciar da maioria não é necessário ter dinheiro, mas sim grandes ideias, certamente alguém as financiarão.
Por fim, para concluir, se você respondeu SIM ao primeiro parágrafo, meus parabéns! Para CHOCHIK, você é um indivíduo que coloca sua cultura em risco. Assim, não é um mero reprodutor de realidades falsas ou bloqueadas, mas sim uma pessoa que possibilita transformações, quebras e mudanças. Cabendo ressaltar que somente aquele que “fala, fala e não diz nada” que poderá promover transformações que mudarão o rumo histórico da sociedade mundial.
“Nenhum povo pode libertar-se e autodirigir- se desconhecendo sua verdadeira história. Ainda que existam períodos de obscurantismo na vida dos povos, a humanidade vem-nos ensinando, através de milênios, que muitos povos construíram os alicerces de sua libertação sob o mais severo dos cativeiros. A alavanca promotora da libertação apoiase no conhecimento crítico da história que gerou e que alimenta as forças opressoras.” (AZEVÊDO, 1990, p. 55)
Dessa maneira, quem sabe um dia as transformações ocorrerão e tanto a sociedade quanto a formação do indivíduo verá que o pensar filosoficamente é um dos caminhos para se chegar ao início da busca pelo fim da cegueira social. Esse é um dos parâmetros para a reflexão de vários preconceitos, das diferenciações dos pré-conceitos, dos estereótipos, e pela busca de uma sociedade mais reflexiva, pautada em análises históricas, comparações plausíveis e conclusões coerentes, não esquecendo da flexibilidade eterna.
*Tatiana Martins Alméri é Socióloga, formada pela UFSC, mestre em Sociologia Política pela PUC-SP e integrante do corpo docente da Unip e da Fatec (taalmeri2@hotmail.com)

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