A linguagem dos direitos humanos

Como a filosofia explica essa questão, cujo ponto de partida requer um entendimento do que o ser humano é capaz.
Por Ricardo Rosseti


Em tempos de reflexão, diante de uma crise da pós-modernidade, o homem contemporâneo é levado a repensar em si mesmo em face de seu passado, a repensar-se como causa e finalidade de suas ações, de seu pensamento, de seu discurso. Essa re exão consiste certamente em uma busca pela redescoberta do ser humano como alguém capaz, que deve se responsabilizar por suas próprias ações: responsável por aquilo que faz, pensa e acerca do qual fala. Trata-se de um homem de guerras, de assassinatos e até de genocídios. Também um homem de preconceitos, discriminações e injúrias. E em cada uma dessas faces do homem, nítidos testemunhos da violência cruel produzida pelo exercício de sua força física e de um sadismo sem limites, a respeito do que os indivíduos praticam contra si mesmos e que, historicamente, podem retratar a capacidade e a falibilidade do Ser humano no caminho de sua realização no mundo.
Ser humano
Trata-se de um conceito complexo que, sob a óptica da Antropologia Filosófi ca, revela diversas possibilidades de signifi cação, de acordo com tradições fi losófi cas construídas na história do pensamento. Para Paul Ricoeur é o indivíduo capaz de praticar ações e por elas se responsabilizar, embora possa falhar na realização desse intento.
Se, por outro lado, esse mesmo homem é um ser de cuidado, de excelências e de amor, atitudes que pratica cotidianamente, esmeradas em sua capacidade de deliberação e escolha – portanto, atitudes racionais –, a manifestação de sua capacidade para o mal não requer, por várias vezes, muito esforço racional para sua expressão. Afinal, é com a violência que o ser humano responde quando constrangido em suas capacidades e liberdades naturais. Eis um dos pontos de partida para se pensar a questão dos direitos humanos, hoje, como um problema de linguagem, o que irá requerer uma compreensão acerca de quem é o ser humano e do que ele é capaz. Por essa razão, o outro ponto de partida se encontraria no interior de uma antropologia filosófica na qual a configuração do homem capaz dependerá de uma hermenêutica do sujeito do discurso dos direitos humanos.
A história da humanidade é profundamente marcada por acontecimentos que atestam a genialidade do ser humano. Desde quando ele passou a interagir e a dominar o entorno, submetendo- o à sua manipulação e à sua transformação, a ação do homem revelou aquilo que lhe é mais propriamente característico: sua racionalidade. Para os gregos da Antiguidade, a razão antecedia a práxis mesmas e, como tal, identificava o homem como um ser tal que a nenhum outro no mundo se equiparava: um ser da fala, do pensamento, do discurso. Com o termo lógos os gregos definiam a ideia de discurso-pensamento, a partir da qual o ser humano se caracterizaria como anthropos logein, isto é, um homem do discurso, um animal que pensa e fala o que pensa. O entendimento desse discurso-pensamento como característica fundamental do ser humano também revelava uma qualidade que, além de única, era também natural.

Violência
Componente da natureza humana, revela uma das características fundamentais do ser humano. Pode ser compreendida com uma das formas de expressão dos instintos e dos sentimentos do homem: corresponderia ao exato oposto da linguagem, aqui considerada como expressão da racionalidade. Ela pode ser expressa com a força física ou mesmo no discurso.
Linguagem
Os gregos equiparavam a linguagem à razão, chegando a considerá-la como uma “realidade falante”. É possível dizer que se trata de uma forma de expressão do pensamento e do espírito, capaz de fazer comunicar os pensamentos entre os seres racionais. Paul Ricoeur a considera como evidência da racionalidade e o exato oposto à violência que o homem pode praticar.

FORMA DE EXPRESSÃO 
Entendiam os gregos que raciocinar e falar identificava no humano a linguagem como uma das mais prementes formas de expressão. Com ela, o indivíduo seria capaz de revelar suas vontades e de comunicar os sentidos de sua compreensão do mundo. Linguagem, forma de expressão do discurso-pensamento, era também uma habilidade que ao homem era natural e fundamental. Ela definiria o homem como um ser capaz de se comunicar, de expressar a si mesmo e de interagir com os outros homens, num processo natural de integração com o outro homem.

Para o filósofo francês Paul Ricoeur (1913- 2005), “violência e linguagem ocupam, cada uma, a totalidade do campo humano” (Leituras 1: em torno ao político. 1995. p. 59), de modo que é possível encontrar nelas as características fundamentais que definem o ser humano.
É por meio da linguagem que os homens expressam seus pensamentos e seus sentimentos, que eles buscam atrair ou repelir o outro, que eles convencem ou promovem a comoção. Segundo o autor, uma palavra bem pronunciada, de maneira adequada e no momento oportuno, pode render alianças de colaboração na busca da realização de certos ideais. E foi nesse sentido que a razão aparece na Ilustração, como um instrumento a serviço do bem, da ordem e do progresso. Doutro modo, a razão também pode provocar desentendimentos intensos, distâncias sem fim, inimizades e con- itos intermináveis. Principalmente quando usada com violência, afinal, não somente de força física que ela se caracteriza. Isso porque, tão logo o homem se percebeu como uma criatura de discursos, cujas transformações e alcances podem ser profundamente arraigados em suas ações, também tratou de usar essa habilidade para dominar: por meio do discurso, o homem ensejou dominar o mundo e o outro homem, sob a alegação do ‘mais racional’ ou do ‘mais sensato’. Nesse sentido, a linguagem tomou forma e com ela o próprio mundo se curvou para, sob sua total submissão, depender dela para existir. Tudo que há no mundo, tudo que no mundo pode ser percebido ou pensado, é imediatamente submetido às regras e atividades da linguagem como sua maneira possível de subsistir. E então, o mundo verdadeiro tornou-se o pensado, o narrado, aquele que se expressa no discurso bem articulado e voltado à persuasão.
Direito
Derivado do latim – de rectum – pode siginfi car “o dirigido” ou “o ordenado’” Etimologicamente, quer dizer o que é reto, o que não sofre desvio quando segue uma direção. Especifi camente, ele pode ser entendido como aquilo que está em conformidade com uma dada razão ou de acordo com sentidos razoáveis do que seja “o justo” ou “o equânime”.
A linguagem, enquanto discurso-pensamento e a par da violência, definiu o homem, buscou definir o seu território e a si própria, sem para tanto ignorar que somente seria possível se fosse suficientemente livre para se expressar. A liberdade como condição do discurso manifesto pela linguagem, então, aparece como outro elemento fundamentador do ser humano da razão. Permitiu a fala e a expressão do pensamento como algo natural, algo da natureza humana, algo certamente racional. E, nesse sentido, permitiu ao ser humano falar do Direito como uma construção racional de significados para as coisas que ele pleitearia como necessárias para uma vida digna plenamente assegurada por certas liberdades.
Isso quer dizer que os direitos humanos, reconhecidos como condições fundamentais da vida humana em sociedade e racionalmente impostos à coletividade como princípios garantidores do bem da vida e de suas livres formas de manifestação, devem ser compreendidos como um conjunto particular de razões pelas quais o respeito e a responsabilidade devem se impor aos membros de uma sociedade. Então, a liberdade do discurso aparece como um bem natural do homem e como condição de possibilidade para se poder conceber a linguagem como o limite da violência. Essa dupla condição da liberdade do discurso deve ser o garante lógico de toda e qualquer fala em defesa dos direitos do homem e da humanidade, uma vez que não somente legitima o discurso, mas também assegura o espaço suficiente para que os diálogos entre diferentes interesses particulares propiciem condições para, ao menos, tentar universalizar tais direitos.

FRUTO DA SOCIEDADE?
Pensadores como Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau anteviram a condição possível do homem do mundo como a decorrência do livre exercício racional da escolha e do discurso, o que possibilitou afirmar a existência de direitos naturais de liberdade, sem os quais não restaria a mínima garantia de paz, de ordem ou de bem-estar na vida em sociedade. No entanto, se os ideais daqueles filósofos foram frustrados pela sorte da guerra, da intolerância ou de desejos imperialistas, é porque não houve ao seu tempo a compreensão da impossibilidade de universalização não violenta da razão, nem de que a linguagem somente estabelece limites à violência quando ela mesma tem como pressuposto a intenção de expressão um sentido possível, e apenas uma possibilidade de sentido ou significação, acerca da realidade, isso sem qualquer pretensão de discurso (absolutamente) coerente.

Nesse sentido, os chamados Direitos Humanos são, primeiramente, um produto histórico-social e jurídico de tempos de crise: crise da razão, do esclarecimento e da linguagem. Eles vêm para corrigir um mal entendido peculiar de nosso tempo, tanto no âmbito do direito, como no da filosofia. Trata-se dessa falta de compreensão de que, tanto o direito como a filosofia, enquanto obras do espírito, destinam-se a dizer – e, portanto, a esclarecer melhor – quem é o ser humano, hoje, e qual o seu lugar no mundo. No entanto, não se pode deixar escapar o fato de que a realidade histórica e social a partir da qual surgem esses direitos é muito diferente daquela da Primeira e da Segunda Guerra; assim como estas diferem da realidade atual. Então, seria possível falar sempre nos mesmos direitos humanos? Ou tratar-se-ia de saber qual a linguagem atual para falar em direitos humanos, hoje? Ou seria questão de, segundo inspiração que se encontra na filosofia dos “jogos de linguagem” de Wittgenstein (Investigações filosóficas, 1953), de questionar a possibilidade de relativização dos discursos que tratam dos direitos humanos de uma determinada comunidade de comunicação?
Não há de se falar em direitos humanos, hoje, sem levar em consideração um dos pressupostos epistemológicos de sua concepção, segundo o qual – enquanto ferramenta para a garantia das liberdades fundamentais dos indivíduos e das coletividades, assim considerada como um bem e como um direito natural do ser humano – os direitos humanos devem ser libertários e fundados numa liberdade natural, algo como um fundamento metafísico da capacidade de expressão racional do homem: a linguagem segundo a perspectiva de um sujeito. Falar em direitos humanos hoje exige a constituição de uma linguagem própria, que não vai se caracterizar necessariamente por uma forma pré-determinada, arbitrária e imposta, nem por um conteúdo vocabular especializado e ideado, mas por aquele fundamento metafísico da condição humana do homem enquanto anthropos logein: a livre expressão do pensamento como linguagem. Já ensinava Wittgenstein que se a linguagem é constituída de “jogos de linguagem” e estes, por sua vez, são definidos pelos usos e práticas da própria linguagem, então, não há de se falar numa “linguagem por decreto”, quer dizer, em uma linguagem e em um discurso arbitrariamente impostos. Nesse sentido, tomemos como exemplo as chamadas “cartilhas do politicamente correto”.

VOCABULÁRIO
Por decreto administrativo e moral o governo impõe um conjunto de materiais de “orientação pública” que se predispõe a determinar os vocabulários a serem utilizados na sociedade para se evitar a identificação de certos discursos como mensagens discriminatórias e preconceituosas. Arbitrariamente, certas expressões deveriam obrigatoriamente ser substituídas, mesmo que isso contrariasse a lógica dos usos práticos próprios de certos “jogos de linguagem”. Então, a palavra “favela” deveria desaparecer e dar passagem para a palavra “comunidade”. Assim como o “negro” – que a rigor define etnia e não cor de pele – seria, mais uma vez, ignorado – e assim, desrespeitado – para tornar-se um “afrodescentente”. E recentemente o “gay” se transformaria em “homo-afetivo”. Todas, formas de mascarar ou maquiar uma situação que, em sede de direitos humanos, devem constituir um nítido e autêntico objeto de preocupação e de re exão, em razão do preconceito e das formas discriminatórias ainda persistentes na sociedade civil. Pode-se falar que são medidas superficiais que em nada inibem – e podem até reforçar – os tratamentos desrespeitosos e irresponsáveis praticados na convivência cotidiana, uma vez que em nada retem um espírito esclarecido e consciente capaz de se perpetuar como linguagem libertária limitadora da violência.
Quando se tenta impor um rito vocabular como os exemplificados, ocorre a clara tentativa de impor à força, e com relativa violência, a ideia de um “discurso coerente”, o que constitui o aspecto da violência do discurso.
Necessariamente, não condiz com a maneira como uma linguagem se perfaz na prática e de acordo com um dado “jogo de linguagem”, uma vez que as regras do jogo somente passam por alteração de acordo com a mudança proveniente dos usos. E isso somente ocorre na prática hodierna e não por imposição de um interesse particular. A linguagem requer um modo próprio, o que se constitui com um mínimo de liberdades. E, de fato, não é com a imposição de uma nova “máscara verbal” que a discriminação e o preconceito venham a desaparecer. Até mesmo porque, em muitas ocasiões, as novas máscaras criadas podem carecer de precisão e de correção, e isso de acordo com as regras de sua constituição. É o caso do neologismo “homofobia”, ao qual vem se atribuindo o sentido de “repúdio ao homossexual”. Trata-se de uma palavra formada de dois termos de origem grega e que, a rigor, não comporta a significação que se pretende com ela. O termo “homo” (que vem do grego homos) significa igual; enquanto que o termo “fobia”(que vem do grego fobos) pode significar pavor, medo ou repulsa. Nesse sentido, o tal neologismo somente pode signi- ficar “repulsa pelo igual”, o que contradiz o signi ficado que tentam atrelar à nova expressão, o de “repulsa pelo homossexual”. Falta ao neologismo algum elemento designador que faça referência à direção sexual e, ainda, como motivo de repulsa ou de preconceito.
Enfim, uma concepção de linguagem para os direitos humanos hoje deve coadunar-se com a ideia de liberdade e com a de tradição de um determinado “jogo de linguagem”. Ela deve ser capaz de propiciar algum entendimento acerca do que sejam os direitos humanos de uma comunidade; um razoável esclarecimento acerca dos seus sentidos possíveis e a oportuna compreensão do significado que ela comporta em seus usos. A linguagem dos direitos humanos deve se inscrever na atualidade como uma busca pela erradicação do mal nas relações sociais e não como uma máscara que, quando muito, tenta falsear os problemas reais das relações humanas.

Texto retirado da Revista: Filosofia: Ciência & Vida.




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