‘O novo livro de Chico Buarque é
um romance em busca da verdade e dos afetos. O autor já publicou os romances
Estorvo, Benjamim, Budapeste e Leite derramado que lhe renderam três prêmios
Jabuti e venderam quase um milhão de exemplares, ficando por meses nas listas
de livros mais vendidos do país. Ele também é autor de peças como Roda viva e
Ópera do malandro. A narrativa de Chico se faz mais daquilo que escorre entre
as palavras, do que com as verdades que elas costuram. […] Ele está entre os
grandes narradores brasileiros contemporâneos.’ (José Castello, O Globo)
Calma, Ciccio, disse minha mãe, quando já crescido lhe perguntei por que
meu pai não escrevia um livro, uma vez que gostava tanto deles. Ele vai
escrever o melhor libro del mondo, disse arregalando os olhos, ma prima tem que
ler todos os outros. A biblioteca do meu pai contava então uns quinze mil
livros. No fim superou os vinte mil, era a maior biblioteca particular de São
Paulo, depois da de um bibliófilo rival que, dizia meu pai, não havia lido nem
um terço do seu depósito. Calculando que ele tenha acumulado livros a partir
dos dezoito anos, posso tirar que meu pai não leu menos que um por dia. Isso
sem contar os jornais, as revistas e a farta correspondência habitual, com os
últimos lançamentos que por cortesia as editoras lhe enviavam. A grande maioria
destes ele descartava já ao olhar a capa, ou após uma rápida folheada. Livros
que jogava no chão e mamãe recolhia de manhã para juntar no caixote de doações
à igreja. E quando porventura ele se interessava por alguma novidade, sempre
encontrava algum pormenor que o remetia a antigas leituras. Então chamava com
seu vozeirão: Assunta! Assunta!, e lá ia minha mãe atrás de um Homero, um
Virgílio, um Dante, que lhe trazia correndo antes que ele perdesse a pista. E a
novidade ficava de lado, enquanto ele não relesse o livro antigo de cabo a
rabo. Por isso não estranha que tantas vezes meu pai deixasse cair no peito um
livro aberto e adormecesse com um cigarro entre os dedos ali mesmo na
espreguiçadeira, onde sonharia com papiros, com os manuscritos iluminados, com
a Biblioteca de Alexandria, para acordar angustiado com a quantidade de livros
que jamais leria porque queimados, ou extraviados, ou escritos em línguas fora
do seu alcance. Era tanta leitura para pôr em dia, que me parecia improvável
ele vir a escrever o melhor libro del mondo. Por via das dúvidas, quando ao
sair do quarto eu ouvia o toque-toque da máquina de escrever, tirava os sapatos
e prendia a respiração para passar ao largo do seu escritório. E me encolhia
todo se por azar naquele instante ele arrancasse num ímpeto o papel do rolo,
achava que em parte era de mim a raiva com que ele esmagava, embolava a folha e
a arremessava longe. Outras vezes a máquina cessava para meu pai pedir socorro:
Assunta! Assunta!, era alguma citação que ele precisava transcrever
urgentemente de um determinado livro. Com isso levava meses para redigir,
rever, rasurar, arremessar bolotas, recomeçar, corrigir, passar a limpo e
certamente contrafeito entregar para publicação o que seriam rascunhos do
esqueleto do grande livro da sua vida. Eram artigos sobre estética, literatura,
filosofia, história da civilização, que ocupariam uma coluna ou um rodapé de
jornal. Quando papai morreu, apareceu um editor disposto a publicar uma
coletânea dos artigos assinados por ele ao longo da vida. Fui contra, cheguei a
mostrar à minha mãe a profusão de correções e emendas ilegíveis que meu pai
sobrepusera ao texto ou anotara à margem dos próprios artigos, recortados dos
jornais. Mas mamãe estava convencida de que o livro seria aclamado no meio
acadêmico, quiçá editado até na Alemanha, graças aos escritos de juventude
concebidos naquele país. E ainda insinuou que desde a infância eu procurava
sabotar meu pai, haja vista aquele ensaio que por minha culpa desfalcaria suas
obras completas. Meia verdade, porque era ao meu irmão que de tempos em tempos
meu pai confiava um envelope a ser entregue na redação de A Gazeta, do outro
lado da cidade. Para isso, além do dinheiro do bonde, ele o remunerava com uma
quantia suficiente para uma semana de milk-shakes. Mas volta e meia meu irmão
me repassava o dinheiro do bonde e o envelope, que eu levava a pé à redação.
Não me movia o dinheiro poupado, que mal pagava duas mariolas, eu ficava era
todo prosa com tamanha responsabilidade. Ainda ganhei a simpatia dos
funcionários do jornal, e não me importava de passar por um suado estafeta do
meu pai, em cujas mãos despejavam mais umas moedas. Mas certa vez, a caminho da
redação, parei para jogar um futebol de rua, era comum naquele tempo. Carros
circulavam só de quando em quando, e ao avistá-los ao longe os meninos
gritavam: olha a morte! Logo recolhíamos as lancheiras, as pastas, os agasalhos
que representavam as balizas e aguardávamos na calçada a passagem do carro para
recomeçar a partida. Mas nesse dia não foi o trânsito, foi uma chuva súbita que
nos obrigou a apanhar depressa nossas coisas e buscar abrigo sob a marquise de
um empório. Chegou a cair granizo, que catávamos do chão, chupávamos,
atirávamos uns nos outros, uma festa. Mas de repente calhou de eu me lembrar do
envelope do meu pai, que eu deixara debaixo de um pulôver e agora estava ali no
meio do aguaceiro. Corri para salvá-lo e por pouco não fui atropelado, pois
naquele segundo passou um Chevrolet que agarrou o envelope com o pneu e só o
soltou duas quadras adiante. Fui colher seus restos, e não havia remédio, o
artigo do meu pai era uma estranha massa cinzenta, uma maçaroca de papel
molhado. – Do blog da Companhia das Letras
(Para fazer download do livro clique no título do mesmo ou no link acima)
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