Na humanidade selvagem, tudo que hoje é simbólico era experimentado como literal. em Marcelo, Marmelo, Martelo, Ruth Rocha retrata esse estágio de consciência na doce infância
Por Carlos São Paulo
Meus filhos, na primeira infância, adoravam me ouvir contando histórias de Ruth Rocha. A mais cotada era Marcelo, marmelo, martelo. Depois, com os meus netos, percebi neles igual entusiasmo. O livro começava com os questionamentos do garoto Marcelo. Ele queria entender o motivo de a chuva cair, o mar não derramar, e o cachorro ter quatro patas. Tal situação me remeteu à "infância" da própria humanidade, quando os homens explicavam o mundo em que habitavam.
O simbólico carrega muito mais coisas do que pode mostrar, enquanto o literal apenas descreve e não o aprofunda. Jung considerava que as transformações no desenvolvimento do indivíduo recapitulam o desenvolvimento da própria humanidade. Então, a criança, ou a infância da humanidade, tenta mostrar uma lógica "poética" aos fenômenos observados, pois é dessa forma que a psiquê funciona.
Antes da ciência que hoje conhecemos, os homens, ao explicarem os fenômenos desconhecidos, criavam histórias que esclareciam aos estudiosos a engrenagem da psiquê. São os mitos - largamente utilizados para entender o homem. Ao interpretarem, por exemplo, que a Terra era o centro do Universo, compensavam a necessidade de encontrar uma importância para a existência do homem na Terra. Os alquimistas, por sua vez, ao procurarem a Pedra Filosofal, observavam os fenômenos da transformação da matéria e projetavam suas fantasias que serviriam à Psicologia Analítica.
Criamos mitos e com eles construímos alegrias e sofrimentos. Em Vidas secas, de Graciliano Ramos, a criança mais nova se identificava com o pai semianalfabeto, mas sonhava ser como ele.
"O SIMBÓLICO CARREGA MAIS DO QUE PODE MOSTRAR, ENQUANTO O LITERAL APENAS DESCREVE E NÃO O APROFUNDA. A INFÂNCIA DA HUMANIDADE TENTA MOSTRAR UMA LÓGICA "POÉTICA", É ASSIM QUE A PSIQUÊ FUNCIONA"
A história de Marcelo vive com o menino tentando encontrar uma lógica para a linguagem. Por que ele se chamava Marcelo e não marmelo ou martelo? A língua se expressa por meio de formas e associações do significante com o significado. Marcelo não entendia a lógica, porque ela se relaciona com a raiz da palavra que ao longo do tempo vai escondendo sua raiz por ir adquirindo camadas de significados diversos.
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Por exemplo, Marcelo não entendeu a explicação do pai em relação ao bolo ser redondo, já que sua mãe fazia bolos quadrados. Ora, no latim, a observação de uma bolha de ar que surge na superfície da água, corresponderia ao som... bulla. Por isso, passamos a chamar essas formas esféricas de bolo. E, só porque o papa emitia certos documentos explicativos, do certo e errado, usando selos de lacre de forma redonda, tais informativos foram chamados de bula papal. O mesmo passou a ocorrer com as bulas dos remédios, por extensão a essa situação. Nossa cabeça também é uma bola sobre os ombros, daí ao planejarmos algo dizemos que "bolamos" essa coisa.
Para a palavra cadeira, Marcelo achava mais lógico chamá-la de "sentador". O latim denominava cathedra o assento especial dedicado às autoridades. No entanto, a parte do corpo que se acomoda ao sentarmos também chamamos de cadeira. A cadeira ainda pode ser a definição de um lugar especial que se ocupa, por exemplo, na Academia Brasileira de Letras. A palavra mesa também veio do latim mensa, mas mesada e mensalão vieram de mês. É uma raiz que no indo-europeu chamavase tanto mês como lua. Lua e mês têm sua lógica, já que há uma regularidade no tempo em que fases da lua denunciam a passagem do tempo medido em mês.
Marcelo, marmelo, martelo Autor: Ruth Rocha Editora: SALAMANDRA Ano de Edição: 1999 Nº de Páginas: 64
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Essa lógica das palavras se perdeu no tempo, pois estava na raiz que vai ficando cada vez mais escondida à medida que as gerações se sucedem e a linguagem sofre suas transformações. Eu nasci no estado da Bahia e, por isso, sou baiano. Qual a lógica de se escrever Bahia com h e baiano sem h? Baía vem da palavra arredondar, que no latim se diziabaiare. Baía passou a ser o local onde o navio podia aportar. Isso inspirou Américo Vespúcio a batizar o meu estado de Bahia. Os linguistas convencionaram que Bahia continuaria com h, mas tudo que não fosse referência ao estado perdia o h. Ou seja, sabemos que a linguagem nasce das coisas e não as coisas das palavras.
Ao crescermos, perdemos nossa capacidade de fantasiar. No entanto, podemos resgatá-la se soubermos contar com a criança que nos habita. É essa criança a responsável pela fantasia dos poetas. A criança pode dizer que a árvore estava despenteada e o poeta entende. O poeta quando diz que o mar derramou sobre as rochas, é um ser adulto em contato com a sua criança, buscando mexer com as emoções e o uso do belo na linguagem, as metáforas. No entanto o garoto pode fazer a mesma poesia com outra intenção, a de questionar a lógica das coisas. A linguagem do poeta e do infante se aproxima de um ponto anterior ao nascimento da consciência.
A história termina mostrando que a comunicação em níveis diferentes dificulta o entendimento dentro de uma lógica. Quando duas pessoas em estágios desiguais de consciência dialogam, existirão dificuldades para se entenderem. Talvez seja essa a grande questão da humanidade. Há um mundo simbólico que está separado do mundo lógico que só consegue ver as coisas de forma literal. É esse o grande abismo a ser superado: o abismo entre o mundo dos poetas e a linguagem dos concretos. É tentar uma vez ou outra ser Marcelo, marmelo ou martelo.
Sobre o autor: Carlos São Paulo é médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia.
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