Biologia e Filosofia: estreita relação
Os pesquisadores Humberto Maturana e Ximena Dávila trazem para São Paulo (SP), em associação com a Caravanserai Brasil, evento que promove os fundamentos da chamada Biologia-Cultural. A corrente estuda o cotidiano e as interações sociais a partir de uma perspectiva biológico-cultural (ver detalhes sobre workshop abaixo).
Em sua opinião, em que ponto a Filosofia e a Biologia caminham juntas?
Filosofia e Biologia caminham juntas conquanto entendermos a filosofia como uma filosofia fundamental e crítica; como a arte de pensar o que pensamos e refletir sobre o que fazemos na vida cotidiana. Ela é fundamental porque quem a experencia é um ser vivo; ou seja, um ente biológico. Não se trata de reflexões vagas, mas de considerações que se manifestam no modo como um ser vivo vive a linguagem e o diálogo. Pode-se dizer que é importante vê-las juntas, porque quando estão interligadas elas constituem o substrato, o âmago de onde pensamos, sentimos, decidimos, conhecemos e compreendemos o mundo, e que nós, da Escola Matríztica, chamamos de "epistemologia unitária". (Epistemologia é a teoria do conhecimento humano; a reflexão geral em torno de sua natureza, etapas e limites, especialmente nas relações que se estabelecem entre o sujeito que indaga e o objeto inerte, as duas polaridades tradicionais do processo cognitivo). Essa epistemologia não é a tradicional, porque ela resulta de uma transformação do questionamento, que substitui a pergunta pelo ser, pelo fazer. Toda filosofia tem um sedimento epistemológico. O sedimento tradicional tem sido a pergunta pelo ser desde os seus primórdios no contexto de uma cultura patriarcal/matriarcal que a teve como berço. Somente através do fazer da biologia é que, em meados do século 20, foi possível perguntar como nos demos conta, pela primeira vez em nossa história humana, de que não temos experiência para explicar objetivamente o mundo no qual vivemos e que conhecemos; e que, inversamente, ele resulta do nosso modo de viver e conviver. Portanto, o caminhar conjunto da filosofia e da biologia nada mais é do que uma consequência coerente de se dar conta dessa mudança fundamental de perguntar. Desse ponto de vista, e buscando as implicações associadas a essa caminhada conjunta, podemos ver que, enquanto cada pessoa reflete sobre a vida ou o viver, a morte ou o morrer, ela está praticando a filosofia. Uma filosofia fundamental que terá consequências éticas para ela mesma, para aqueles que a rodeiam, e para o mundo natural que ela habita. Nesse sentido, a filosofia, por seu caráter "entrelaçado" com o viver de quem pergunta, constitui um espaço para fazer perguntas, não sendo necessariamente um espaço para esperar respostas. Trata-se mais de um influir na experiência de perguntar-se e dar-se conta do mundo que surgirá como resultado da pergunta em nossa própria vida e convivência. Quando uma pessoa se faz essas perguntas, quando questiona o próprio viver a partir de um determinado sentido, ela se torna uma pessoa observadora senciente (que percebe pelos sentidos). Uma coisa é o mundo acadêmico; outra é a questão da pergunta aberta, na qual se conta a experiência e não se espera nenhuma resposta, senão descobrir um mundo de existência no qual me dou conta do que faço nesse mundo. Um mundo que tem a ver conosco e no qual as perguntas que nos fazemos só podem ser feitas quando estamos centrados em nós mesmos. De estarmos no presente, na inocência de viver o que vivemos e de onde o perguntar surge espontaneamente. Um perguntar que pode nos acompanhar sempre, porque ele é, em si mesmo, a experiência de viver e compartilhar a reflexão em qualquer conversa que experimentemos (vivamos).
Que vertentes filosóficas mais influenciaram a construção da chamada Biologia-Cultural?
Falar de influências sempre parece negar a autonomia reflexiva e ativa de cada pessoa, assim como a responsabilidade que vivemos nos mundos que nascem do nosso questionamento. No entanto, como somos humanos e pertencemos a uma só família muito grande e antiga, podemos sentir ressonâncias de origem consciente ou inconsciente em nosso questionamento; nos modos de pensar, sentir, ver e entender outras culturas diferentes. No nosso caso, sentimos isso no caminho do Tao. A chamada Filosofia do Tao, em que o Tao que pode ser nomeado não é o Tao que ressoa com o nosso próprio sentir, pensar, ver e entender, no qual a explicação da experiência não pode substituir a experiência em si. Essa filosofia, que questiona o suceder, vem do Oriente, onde o sedimento epistemológico afirma que tudo é ilusório. No nosso caso, ela evoca a biologia, com a qual podemos ver que na experiência não conseguimos distinguir entre ilusão e percepção, convidando as duas formas de pensamento a libertar a realidade, para lhe perguntarmos sobre a experiência em si, a partir de nossa própria experiência. Tanto num como noutro caminho, o encontro com o mundo natural é uma forma séria de se filosofar, porque nesse encontro vive-se uma unidade que não pode ser nomeada - entre o tudo e o nada, entre o ordinário e o extraordinário. E se soubermos entendê-la, veremos que ambas convidam constantemente a uma reflexão que provém da unidade sistêmica da própria experiência de viver e morrer.
Que novo modelo de homem esses dois conhecimentos juntos podem propor? A biologia cultural contempla elementos capazes de ajudar em sua construção?
A biologia cultural não contribui para um novo modelo de homem. A biologia cultural, ou seja, a reflexão sobre os fundamentos biológico-culturais do viver e conviver humano, nos fornece uma nova perspectiva da forma como vivemos o que vivemos. De como nos relacionamos com as pessoas, com os seres vivos, e de como fazemos o que fazemos na vida cotidiana. Não para modelar um novo homem, embora possa surgir um modo de vida diferente para a nossa humanidade. Uma humanidade que é a mesma desde as suas origens na biologia do amor, e que, em suas diversas ramificações culturais, semeou as possibilidades para diferentes linhagens. Entre elas, e somente se nos dermos conta de nossa origem na biologia do amor, podemos, se assim o desejarmos, colaborar para que nossos filhos e filhas, assim como seus próprios filhos e filhas possam viver na linhagem do que podemos chamar de um Homo sapiens-amans ethicus (um homo sapiens amante da ética). Uma linhagem que só resulta, e que, como no Tão, não pode ser intencional e, que, portanto, é um resultado e não um modelo. Não é um novo modelo de ser humano; é o ser humano em sua origem amorosa. É o ser humano que vive as consequência éticas de entender essa origem amorosa. Um ser humano, uma pessoa que, mergulhada em suas perguntas e reflexões, percebe que essa origem amorosa está presente nela e em todo ser humano vivo no planeta e que só é preciso deixá-la sair se assim o desejar. E, claro, ao fazê-lo, seremos responsáveis pelo mundo em que vivemos. Não parcialmente responsáveis, mas totalmente responsáveis, porque o mundo em que vivemos resulta do nosso próprio modo de viver - e se esse viver tem a ética como centro, então o mundo em que vivemos é um mundo no qual cabem a diversidade de pontos de vista, de pensamentos e de entendimentos. É um mundo de colaboração que expande naturalmente as nossas habilidades sociais humanas, como a inteligência, a criatividade e a sabedoria.
Que problemática é fundamental hoje na discussão do [ser] humano? O trabalho e as organizações ocupam destaque na pauta desse debate? Por quê?
Para quem olhar para a nossa atual cultura, o medo, a desconfiança e o poder são problemas óbvios. Ao refletirmos sobre como fazemos o que fazemos, de que modo vivemos, nos damos conta de que existe um fenômeno mais fundamental que resulta da análise cotidiana do nosso modo de vida em diferentes culturas: a fragmentação do nosso modo de viver. Não vivemos de uma forma unificada. Vivemos divididos, fragmentados nos diferentes mundos que criamos com nossos modos de vida, muitos deles contraditórios e que podem, inclusive, anular-se mutuamente. Nas organizações, por exemplo, encontramos pessoas que, como seres multidimensionais, estão vivendo suas vidas cotidianas experimentando sensações de medo e desconfiança, e que não estão centradas em si mesmas. Elas vivem uma responsabilidade parcial do mundo em que vivem, e tocam de formas diferentes os outros mundos, ou as áreas em que as pessoas realizam seu viver e conviver. Se olharmos de maneira sistêmica-sistêmica, podemos dizer que as diferentes comunidades humanas ou organizações em que vivemos, como a família, a escola, a universidade, a empresa, as organizações sociais ou políticas, a sociedade, são, na atualidade cultural dos seres humanos, parte do mundo natural em vivemos. Na realidade, uma parte central do mundo natural em que vivemos. A forma como vivemos a nossa existência nele não é algo banal. Tudo se concentra em nossa corporalidade e em nossa dinâmica psíquica. O que fizermos em uma delas trará consequências conscientes ou inconscientes para o resto - isso porque somos seres unitários, apesar de vivermos fragmentados. Os seres humanos estão se dando conta dessa fragmentação cultural presente em suas vidas; de suas consequências de "cegueira", que resultam da especialização, da profissionalização ou da segmentação econômica, social ou política. Por um lado, nossas áreas de eficiência e eficácia parecem estar encolhendo; por outro, vivemos em um mundo cada vez mais globalizado e interligado; e cada vez mais afetado pelo nosso modo de vida. É por isso que nos ocupamos com o que entendemos como sustentabilidade; pois ela nada mais é do que o resultado natural de como ocorre a harmonia entre o que nós, seres humanos, fazemos (executamos) em nossa forma de viver (antroposfera), com o que o conjunto de todos os seres vivos gera através de sua vida no mundo que habitamos (biosfera). Essa harmonia ou desarmonia não é banal no que diz respeito ao bem-estar ou mal-estar que orienta o nosso modo de vida. Por exemplo, se vivermos com confiança, respeito e colaboração, viveremos em um mundo bem diferente de um outro dominado por desconfiança, controle, manipulação e obediência. Em última análise, a harmonia fundamental entre a antroposfera e a biosfera é nossa responsabilidade como indivíduos. É a nós, pessoas, seres humanos, que interessa a sustentabilidade ou a responsabilidade social. Somos nós que queremos tomar conta do mundo que estamos criando com o nosso modo de viver e conviver. O primeiro passo é reconhecer isso - e reconhecê-lo no principal setor em que estamos vivendo a mudança cultural que enfrentamos: nas organizações. As organizações são criadas por pessoas. Uma organização, um grupo de pessoas que se unem para fazer algo que queiram fazer juntas, é um modo de se organizar. Os limites operacionais dessa organização serão o conjunto de ações com que as pessoas realizam seu propósito, ou projeto comum, que constitui a essência da organização nesse sentido. Quando pertencem a qualquer organização, as pessoas em geral sempre ficam entre si (mesmo que vivam fragmentadamente). Mas se elas se encontrarem em um ambiente de medo, desconfiança, controle, arrogância e agressividade, elas não poderão viver naturalmente a responsabilidade que resulta do fato de assumirem as consequências que seus atos têm para elas mesmas, para os outros, ou para o que as rodeia. Em contrapartida, quanto maior o clima de transparência dos desejos que constituem os diferentes processos que moldam qualquer organização, as chances de aceitar pontos de vista diferentes, respeitar e colaborar a partir da própria autonomia se tornam possíveis operacionalmente, criando uma dinâmica sistêmica que não só tem consequências sobre o trabalho em si das pessoas na organização; mas também sobre sua vida familiar, a sociedade, ou o mundo em que vivemos. Portanto, nosso propósito fundamental é querer acabar com nossa fragmentação. Essa é uma tarefa que convida e envolve a todos: todas as pessoas e seres vivos. Trata-se de um esforço de colaboração entre os diferentes pontos de vista e entendimentos que as pessoas de diferentes culturas nos proporcionam todos os dias à medida que vemos meninos e meninas, jovens e adultos que querem assumir para si mesmas, para os outros e para o que os rodeia, a responsabilidade pelas consequências de seus atos e ações. Como Matrízticos, gostaríamos de convidar a todas as pessoas que dirigem e operam as mais diversas organizações para esse encontro de colaboração, se elas o desejarem. Nós as convidamos a viver a experiência de que é possível gerar processos sustentáveis de serviços produtivos que trazem consigo simultaneamente confiança, respeito, inteligência, criatividade, alegria e responsabilidade. Isso é possível se nos conscientizarmos do que a nossa própria origem como seres humanos nos revela: nosso bem-estar como pessoas aumenta com a autonomia reflexiva e de ação que torna possível a inspiração mútua e a colaboração.
Sobre o workshop em São Paulo:
Expandir a compreensão dos participantes sobre "como as pessoas fazem o que fazem" em seu ambiente de trabalho e suas consequências para a gestão organizacional são os principais objetivos do workshop. Maturana e Ximena abordarão os desafios dos gestores diante da chamada "cultura organizacional" e sobre a natureza emocional dos problemas da convivência humana nas organizações, a potência da reflexão como ferramenta de orientação de processos sistêmicos nas organizações, o conceito de "escuta" e seu impacto na gestão organizacional, o papel das emoções na orientação dos processos internos organizacionais, tendo em vista a sustentabilidade da organização. Sobre os docentes da Matríztica que desenvolverão este workshop: Humberto Maturana Romesín (Santiago, Chile, 1928), co-fundador da Escuela Matríztica de Santiago, estudou Medicina na Universidade do Chile, fez PhD em Biologia na University College of London e Harvard, desenvolveu seu Pós-Doutorado no MIT, criando trabalhos científicos inovadores. É um dos co-fundadores da Faculdade de Ciências da Universidade do Chile, da qual agora é Professor Emérito. Em 2000, junto com Ximena Dávila, fundou o Instituto Matríztico que, em 2010, tornou-se a Escuela Matríztica de Santiago. Recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais pelo reconhecimento de sua vasta obra científica, voltada à compreensão do ser vivo (Autopoiesis), da linguagem e cognição (Biologia da Linguagem e Cognição), do humano (Biologia do Amar) e da matriz da biologia-cultural da existência humana (Biologia Cultural). Ximena P. Dávila Yáñez (Santiago, Chile, 1952), epistemóloga e conselheira organizacional e de família, estudou aconselhamento individual e familiar (com especialização em relacionamentos em espaço de trabalho) no Instituto Profissional Carlos Casanueva (ICC), trabalhou em várias organizações privadas e para o governo chileno. Seu tema de pesquisas e estudos fundamentais tem sido o entendimento da dor humana e do sofrimento aos quais as pessoas solicitam ajuda relacional. Neste percurso, desenvolveu um modo particular de compreender as chamadas "Conversações Libertadoras", das quais tem feito sua arte sob os fundamentos da Biologia da Cognição e da Biologia do Amar. Em 2000, junto com Humberto Maturana, fundou o Instituto Matríztico, que mais tarde tornou-se a Escuela Matríztica de Santiago - um centro de pesquisa e reflexão sobre o ser humano a partir do conceito da biologia-cultural. Ximena também tem atuado como pesquisadora e professora. Cristóbal Gaggero (Santiago, Chile, 1976), engenheiro comercial e coordenador estratégico com foco na visão-ação ética das organizações e seus processos de transformação cultural. Coordenou e monitorou o projeto de transformação cultural da Federação das Indústrias do Paraná, conduzindo a realização do Dynamic Systemic Map institucional. É membro da equipe de pesquisadores da Escuela Matríztica de Santiago, onde desenvolve diversos trabalhos no domínio da sustentabilidade ético-social das organizações.
Serviço: Workshop Internacional "Transformação Cultural em Organizações Centradas em Pessoas" Data: 22/03, das 8h30 às 18h30, 23/03, das 09h30 às 19h00 Local: Caravanserai Eventos/Galeria Sergio Caribé, Rua João Lourenço, 79, Capital - SP (Estacionamento no nº 104) Inscrições e informações: http://www.workshoptransformacaocultural.tangu.com.br/
Reportagem retirado da revista: Filosofia: Ciência & Vida
Sobre o professor: Uanderson Menezes
Professor de Filosofia na Escola Estadual João XXIII em Ipatinga. Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário do Leste de Minas Gerais - Unileste MG; Especialista em Gestão Estratégica de Recursos Humanos pelo Centro Universitário do Leste de Minas Gerais - Unleste MG; Especializando em Gênero e Diversidade na Escola pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito de Ipatinga - Fadipa
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