Texto Revisional para o Simulado - 1º Ano


Para que Filosofia?
Desde os anos 70 do século passado que, em Minas Gerais, se discute a volta da disciplina Filosofia ao Ensino Médio.
Durante os anos 60, com o impacto da ideologia da cultura tecnicista, de influência norte-americana, a educação humanista, dita clássica, sofreu grande abalo. O ensino de Filosofia, assim como o do Latim, por exemplo, acabou cedendo à formação científica, que passou a significar uma suposta modernização e adequação às novas demandas da realidade econômica do país. Pode-se dizer que o modelo de educação até então vigente entre as elites brasileiras teve que confrontar-se com uma progressiva massificação da cultura, na qual surge a exigência legítima de progressiva democratização. Em Belo Horizonte, no início dos anos '70, tanto no ensino público (federal e estadual), como em algumas escolas particulares, já se experimentava com novos formatos para a Filosofia no curso "científico".
Nestes últimos 30 anos, a prática do ensino de Filosofia e a reflexão sobre suas condições de realização amadureceram e geraram debates teóricos vitais, que nós, educadores, devemos assumir, ao mesmo tempo, como desafios e estímulos. Dentre eles, vale mencionar, a oposição entre o qualitativo e o quantitativo em educação, o conflito entre conteúdos e competências, a tensão entre profissionalização e formação para a vida, entre elitização e massificação, a necessidade de se optar entre generalidades e a especificidade dos conhecimentos, etc. Certamente são problemas que merecem uma precisão adicional e, como sempre no campo da Filosofia, vale a pena pensá-los de frente para termos a experiência concreta de sua relevância.
O ensino de Filosofia, pensado agora no contexto fortemente pragmático do treinamento profissionalizante, se vê paradoxalmente obrigado a renovar-se, o que não é necessariamente ruim, uma vez que, como sabemos, o filosofar sempre alimenta-se de sua negação. Ensinar Filosofia, no final do séc. XX e começos do século XXI, passa a significar formação crítica e torna-se um elemento decisivo na redescoberta da educação para a cidadania (recuperando o cerne movimento socrático-sofístico da Atenas do séc. V a.C.). A Filosofia enquanto paideía se opõe ao positivismo tão disseminado na cultura brasileira e se renova com a pesquisa em História da Filosofia, nos principais currículos de graduação das universidades.
A questão da utilidade da Filosofia é tão antiga quanto estrutural. Pensamos que cada geração de professores deve estar preparada para responder a esta pergunta de modo sério e vigoroso: para que serve a Filosofia?
Seja nos anos 70 do séc. XX, no Ministério da Educação em Brasília, seja no início do séc. V a.C., na ágora da antiga Atenas, a mesma questão é retomada obstinadamente, ou seja, a pretensão filosófica ao saber tem que legitimar sua inserção na cidade, perante os saberes técnicos e utilitários que predominam na mentalidade operante da construção material da vida comum, assim como da racionalidade eficaz da vida política e jurídica.
Retomamos o tema pelo viés socrático: a prática do filosofar vale não só pelo bem em si que ela significa, mas também pelos resultados que proporciona (República II). A Filosofia é útil e sua utilidade decorre do seu efeito pedagógico e de sua força educadora, necessária para a humanização do ser humano, necessária para que se possa construir uma consciência autônoma, um estado de direito, em suma, uma cidade justa.
Não há nenhuma razão para perpetuarmos a imagem derivada de uma leitura rápida da Metafísica de Aristóteles, segundo a qual o filósofo seria um indivíduo totalmente desinteressado, que estaria acima das solicitações do interesse e do desejo humanos. Não devemos e nem precisamos contrapor Filosofia e vida prática interessada. Na verdade, os antigos gregos nos ensinaram que a racionalidade é simultaneamente prática e teórica; e se a prática racional é o domínio dos fins, da busca e realização dos valores, não faz sentido idealizarmos de maneira abstrata e irrealista uma atividade tão decisivamente humana, como se ela fosse supérflua e inútil, ou seja, como se ela não tivesse consequências para a vida.
Para decidirmos da suposta inutilidade da Filosofia é preciso que se estabeleça o que entendemos por “útil”. Se pensarmos num plano bastante elementar, do instrumento mecânico, que é útil exclusivamente pelo resultado imediato que proporciona (como usar um martelo para pregar um prego, por exemplo), podemos e devemos, com certeza, reconhecer a inutilidade da Filosofia. Ela certamente não é um instrumento neutro, sem nenhum sentido ou interesse nele mesmo. Mas se elaborarmos um pouco mais e pensarmos numa perspectiva axiológica, de reflexão sobre os valores (éticos, estéticos, culturais, entre outros), devemos reconhecer a profunda utilidade da Filosofia. Nessa perspectiva, a utilidade se transforma em relevância cultural, papel pedagógico, formação humanística, fator determinante na instauração de valores culturais, elemento construtor da cidadania, etc.
O pensar filosófico é uma modalidade do desejo (que os gregos chamavam de Éros) e, enquanto tal, pode e deve ser a expressão de aspirações humanas legítimas, marcadas por interesses variados, em diversos níveis. Na perspectiva contemporânea, não podemos mais simplesmente opor afetividade e pensamento reflexivo, emoção e inteligência; sabemos que o trabalho do pensamento filosófico se enraíza nas estruturas da afetividade humana e se desenvolve junto com elas. Nessa medida, exercer o pensamento filosófico de maneira viva e autêntica é da maior utilidade para os seres humanos. A Filosofia pode propiciar crescimento pessoal e psíquico, em termos de uma maior capacidade de auto-compreensão e expressão e, ainda, levar ao desenvolvimento de uma consciência crítica e autônoma. Enquanto debate racional, ela certamente proporciona crescimento cívico, respeito pelo outro e pela diferença que representa.
Com relação à especificidade do ensino da Filosofia, pensamos, ainda, nas habilidades cognitivas, reflexivas e críticas que ele desenvolve no indivíduo. Habilidades que, talvez, pudessem ser adquiridas através de outras disciplinas, mas que, na verdade, devem ser concebidas num viés propriamente filosófico. O amadurecimento da formação nas universidades demonstra que há um modo filosófico próprio de conceber essas habilidades. É preciso estarmos atentos às interfaces, mas também às diferenças que delineiam a especificidade da Filosofia por oposição tanto à Psicologia como à História, por exemplo. Nesse sentido, pensamos que é fundamental que se tente construir as habilidades na convivência com a história dos problemas consagrados pela tradição como sendo filosóficos. Dentro da perspectiva histórico-cultural própria da Filosofia ocidental, o filosofar é um modo de viver e um fazer que, a nosso ver, deve incluir as seguintes atitudes:

Perceber - A atitude filosófica implica em saber acolher e detectar questões no plano do vivido, na cultura; é preciso ser sensível aos acontecimentos, saber discernir diferenças. Trata-se de uma sensibilidade inteligente (ou de uma inteligência sensível). Não basta erudição ou acúmulo de conhecimentos, é preciso acuidade de percepção, um discernimento que se experimenta e que aprende com a experiência. Filosofar implica sempre numa atitude interpretativa, numa capacidade de leitura, tanto de textos convencionalmente filosóficos, como de outros “textos” (objetos, obras de arte, acontecimentos, imagens, eventos e produtos culturais diversos). O perceber filosófico é um modo de estar no mundo, de se ver e ouvir o outro, de captar e decifrar signos, um modo que não parte de uma suposição de saber, mas que é uma aspiração (filo-) que se orienta por uma exigência de significação (-sophia).

Problematizar – A Filosofia, em geral, caracteriza-se por sua atitude de questionamento do imediatamente dado, de desconfiança das aparências e de dúvida a respeito do óbvio. Pensar filosoficamente significa questionar, confrontar problemas. Ninguém pensa de graça, nós só pensamos autenticamente se tivermos que enfrentar obstáculos: em Filosofia, o impasse é condição para a passagem.

Refletir – Mas, em última análise, não basta pensar; é preciso exercer um pensar que envolva o sujeito, que volte-se sobre aquele que pensa. Nesse sentido, o pensar filosófico parte do sujeito, encontra-se com o objeto e volta-se novamente sobre o sujeito; esse percurso reflexivo, portanto, é próprio de uma tomada de consciência que vem a posteriori, de um saber crepuscular ou que acontece no depois. Nesse sentido, o pensar filosófico é especular, é implicação do sujeito no problema a ser pensado.

Conceituar - Já desde os antigos, pensar filosoficamente implica em ser poeta, no sentido grego da palavra, ou seja, implica em fabricar, produzir, criar palavras e conceitos; ser capaz de sintetizar a experiência, uma multiplicidade vivida, na direção de uma unificação conceitual. Essa capacidade sintética significa pensar de modo criativo, percebendo e produzindo cultura, inteligência e pensamento.

Argumentar – A capacidade de argumentar é uma habilidade igualmente essencial: o filósofo tem que ser capaz de defender uma posição, atacar ou criticar outras, ou seja, é preciso que ele saiba sustentar com razões a posição que adota; trata-se de justificar coerentemente o conhecimento que se pretende ter; filosofar implica, sempre, em dar razões de si mesmo e de suas tomadas de posição, para si e para o outro, é isso o que lhe confere sua dignidade.

Texto retirado do CBC de Filosofia

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