Cristiano de Jesus é mestrando em Filosofia, mestre e doutor em Engenharia de Produção. É professor universitário de Filosofia, Ética, entre outros. Pesquisa sobre a dimensão filosófica da tecnologia e os impactos da tecnologia na sociedade. cristiano.jesus@academusnet.pro.br
O objetivo da Indústria Cultural não é o desenvolvimento do conhecimento nem criar caminhos para que isso aconteça, mas sim produzir e comercializar conteúdos. As estratégias usadas para maximizar a penetração dessa mercadoria provocam consequências que ferem a autonomia dos indivíduos, capturando-os do gozo de seu tempo livre para inseri-los num jogo de consumo passivo e alienante. Os produtos da Indústria Cultural impedem a atividade mental do espectador, exigindo apenas o instinto e a prontidão dos sentidos. São apresentados de tal modo que fomentam a estereotipação das preferências pessoais, agrupando-as em grandes categorias. Essa dinâmica é extremamente eficiente para a padronização dos hábitos e consequentemente para os negócios, pois assim conseguem melhor direcionamento, mas impedem o caos cognitivo organizando e antecipando as experiências, criando modelos de comportamento e de preferências.
Adorno, em A teoria da semicultura, apresenta um outro efeito. Quanto mais massificada estiver a produção cultural, mais superficial ela se torna. Tudo não passa de informação breve e sem profundidade. As pessoas conhecem os grandes autores e personagens históricos, mas não compreendem as suas obras em sua expressão máxima. Conhecem-nos porque foram citados em desenhos da Disney, no cinema ou outro programa televisivo que normalmente, para simplificar a linguagem, reordena a realidade, os acontecimentos e feitos de tal forma que descaracteriza-os completamente.
Esse fenômeno fica mais claro quando observada a comparação que Adorno faz entre música comercial e música clássica. Enquanto a primeira se baseia em regras de composição que planificam e condicionam os reflexos, a segunda, assim como na Poesia em que o significado de cada palavra está no sentido do poema, cada elemento da música se une na totalidade da obra.
Em Minima moralia, ainda Adorno aponta outro aspecto da sociedade midiatizada, chamando atenção para a indisposição crescente para o conteúdo denso e considerado difícil enquanto as formulações frouxas são recompensadas com ampla aceitação. Afirma o autor, "(...) a expressão rigorosa obriga à univocidade da compreensão, ao esforço do conceito, ao qual as pessoas foram desabituadas, e lhes exige, ante todo conteúdo, a suspensão dos lugares comuns, logo um isolamento a que elas violentamente se opõem".
Guy Debord, em A sociedade do espetáculo, também apresenta considerações que podem complementar a perspectiva de Adorno. Ele define como "espetáculo" a relação social entre pessoas mediada por imagens e que exerce a função de instrumento de unificação da sociedade.
CONSUMO PASSIVO
Os meios de comunicação de massa possuem grande capacidade de penetração, e as relações sociais que mediam por meio das suas imagens e conteúdos conduzem as pessoas a uma vida distante da existência, uma vida de aparência e consumo passivo, seja de produtos, ideologias, valores, costumes, fatos e notícias. Debord alerta que é muito mais fácil encarar a realidade no reino das imagens - que é simplificada e reordenada segundo as conveniências - do que no plano da existência.
O espetáculo define o sentido da prática em prática econômico-social, portanto, define o emprego do tempo que se resume em tempo da produção econômica. Este se manifesta de diversas formas em fragmentos abstratos. Assim sendo, o espetáculo estabelece uma falsa consciência do tempo para ocupar o lugar do tempo da existência, que portanto é expropriado violentamente.
A sociedade estática transforma o tempo errante da existência em "tempo cíclico". Ao se fixar em um local, o homem ordena o território e o tempo num processo de repetição de gestos: "a passagem do nomadismo pastoril à agricultura sedentária é o fim da liberdade ociosa e sem conteúdo". Essa sociedade que tudo modela, ao materializar a ideologia na forma de espetáculo e assim confundi-la com a própria realidade social, consegue desse modo "talhar todo o real segundo o seu modelo".
Contudo, na atualidade, mesmo estando livre da atividade produtiva, de obrigações e compromissos, o indivíduo incauto pode ainda não usufruir o tempo livre, embora na maioria das vezes acredite que o esteja fazendo.
Foi nesse sentido que Adorno exclamou a seguinte constatação: "(...) o homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho".
Camus observa em Sísifo a imagem do proletário, homem trabalhador que está condenado a repetir tarefas indefinidamente por toda sua vida, porém a Sísifo restam apenas a revolta e o desespero porque é consciente da sua condição e sabe que não pode se libertar da maldição.
O homem contemporâneo pode se reconduzir se reconhecer sua alienação, mas para ter consciência da sua condição e mudar o curso da sua vida a fim de conquistar sua emancipação frente ao fluxo estruturante e planificador que está submetido, precisa do tempo livre que dispõe Sísifo quando desce a montanha. Caso contrário, permanecerá preso ao imperativo da subsistência, dos compromissos e das obrigações.
Infelizmente é possível identificar a tese de Camus na atualidade quando se observa a correspondência do triste destino de Sísifo em situações muito emblemáticas, como no caso do experimento realizado pelo jornal estadunidense Washington Postao submeter o renomado violinista Joshua Bell a uma apresentação de uma hora no metrô de Washington. Ele executou o mesmo repertório que uma semana antes apresentara no Teatro de Boston por 100 dólares o ingresso. O empenho e a qualidade das notas musicais extraídas pelo talentoso musicista de seu instrumento avaliado em 3,5 milhões de dólares não foram suficientes para atrair a atenção da multidão de transeuntes. Das mais de mil pessoas que passaram por ele, apenas 6 pararam para ouvi-lo e em torno de 20 deixaram-lhe uma moeda, seguindo apressadamente para seus destinos. Ele conseguiu arrecadar 32 dólares e 17 centavos por sua performance.
ÓCIO NAS UTOPIAS |
Nas utopias de Platão, Thomas Morus, Francis Bacon e Tommaso Campanella, em todas elas, há referências sobre a importância do tempo livre. Em A República, Platão considera que o ideal humano somente pode ser realizado na figura do cidadão filósofo, isto é, o indivíduo livre dos encargos da subsistência para a contemplação teórica da verdade e para a práxis política. Thomas Moreus descreve, em Utopia, que homens e mulheres dedicam seis horas diárias ao trabalho podendo escolher livremente como gozar seu tempo livre em outras atividades importantes como leitura, descanso ou lazer: "É deixado à escolha de cada um o que fazer nas demais horas do dia, quando não estão trabalhando, comendo ou dormindo. Podem, portanto, dedicar-se a qualquer ocupação que seja de seu agrado, desde que não desperdicem suas horas livres na ociosidade ou em divertimentos insensatos. Em geral esse período é dedicado a alguma atividade intelectual. Na verdade, há o costume de assistir palestras públicas antes do amanhecer. A presença nessas palestras é obrigatória apenas para aqueles que se dedicam especificamente ao estudo; no entanto, muitas outras pessoas, homens e mulheres de todas as condições, comparecem voluntariamente". Já Campanella, em A cidade do sol, demonstra a mesma preocupação com uma divisão do trabalho que diminua o tempo de dedicação na labuta a fim de economizar "tempo e fadigas". Em Nova Atlântida, Francis Bacon sonha com os tempos em que as máquinas farão todo o trabalho, deixando aos homens o tempo para cultivar livremente o espírito e o corpo. |
TEMPO PRIVILEGIADO
Gilles Pronovost, em Introdução à Sociologia do lazer, apresenta a perspectiva de tempo livre como tempo privilegiado, em que essencialmente é possível experimentar propriamente elementos como liberdade, satisfação pessoal, criatividade, ludicidade etc.
Se observados os alertas que fazem Horkeimer, Adorno e Debort, e com base em Pronovost, é possível considerar que tempo livre não é apenas tempo livre da produção, compromissos e obrigações, mas também livre do conteúdo de baixa qualidade, simplificado, planifi- cador e ordenador da maioria dos meios de comunicação de massa. Tempo livre, propriamente, somente assim pode ser reconhecido se for o tempo do autêntico processo de reflexão, avaliação e reposicionamento.
A partir de Nietzsche, é possível supor, sem medo de errar, que a culpa disso tudo não é, como normalmente se pensa, do modelo econômico, da Indústria Cultural e de outras instituições sociais que ocupam nosso tempo. A culpa é do próprio homem.
Para este filósofo, a vida em sociedade é uma maneira de o indivíduo se agarrar a uma vida fácil suscitada pelos costumes, regras morais e por sistemas racionais que condicionam o homem, isentando-o, desse modo, de enfrentar o caos da existência e se permitir à transformação em cada instante, em cada ato. Trata-se da atitude de abdicar-se da difícil porém produtiva vida dionisíaca para se submeter à parcimônia, à balofa vida apolínea.
Trata-se de uma escolha pela segurança em detrimento da produtividade intelectual e da originalidade. Em O nascimento da tragédia no espírito da música, Nietzsche afirma que os indivíduos "sentem, em geral, a carga e o peso da existência com um desgosto mais profundo e que precisam ser iludidas com estimulantes seletos para superar esse desgosto. Desses estimulantes é constituído tudo aquilo que denominamos civilização". E por isso em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral" ele defende que "o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho".
O sonho de Bacon está longe de se tornar realidade. Um mundo em que as máquinas desenvolvem todo o trabalho é impossível quando a criatura passa a dominar o criador, ou seja, quando a vida passa a ser ordenada pela dinâmica tecnológica. Ao contrário de trabalhar menos, passa-se a trabalhar mais. Se outrora a escuridão noturna era o limite para o trabalho, surgem eletricidade e lâmpada para superar esse limite. Se a distância física era o limite para a comunicação, eis que surgem os veículos de condução, telefones e internet para que o trabalho continue em qualquer lugar. Contudo, o homem se reconhece, na maioria das vezes, apenas como ser social, apenas como condicionado por uma realidade criada por ele próprio.
A única forma de resgatar o tempo livre é reconectando-se à existência, resistindo à tentação de uniformizá-la, encerrá-la em um conceito, ordená-la segundo uma certa lógica, de criar um reino de esquemas donde é "possível criar um novo mundo de leis, privilégios, subordinações. (...) O homem por medida de todas as coisas. (...) Esquece, pois, as metáforas de origem, como metáforas, e as toma pelas coisas mesmas. (...) Esse impulso à formação de metáforas (leva à procura por) conceitos, um novo mundo regular e rígido como uma praça forte".
Nietzsche também identifica a tendência humana pela criação de estruturas lógicas para se agarrar. Em A gaia Ciência ele afirma que "a vida não é argumento. Armamos para nós um mundo, em que podemos viver - ao admitirmos corpos, linhas, superfícies, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo: sem esses artigos de fé ninguém toleraria agora viver".
Portanto, segundo Nietzsche, é possível recuperar a liberdade e atingir a lucidez ultrapassando conceitos e medos supersticiosos, abandonando convicções e a crença da posse na verdade incondicionada. É necessário também reconhecer a falência dos juízos éticos que a sociedade pretensiosamente insiste repousar sobre verdades absolutas.
O homem livre não nega o reino dos acasos, onde, conforme menciona Nietzsche em Aurora, "tudo se passa sem sentido, nele tudo vai, fica e cai sem que ninguém pudesse dizer, por quê? Para quê? Temos medo desse poderoso reino da grande estupidez cósmica, pois aprendemos a conhecê-lo, o mais das vezes, quando ele cai sobre o outro mundo, o dos fins e propósitos, como um tijolo do telhado e nos atinge mortalmente algum belo fim".
A liberdade é possível àquele que não se agarra aos bem - ordenados sistemas racionais e metafísicos, sejam eles políticos, morais, científicos, econômicos etc. Por isso mesmo não confia cegamente na consciência, pois sabe que o conhecimento também se dá fora do seu controle, isto é, por meio de impulsos e pulsões de desejo, desejo de conquista, de poder e de criação. Entende a linguagem como mera porta-voz da consciência, que incapaz de abarcar o conhecimento no devir, na transformação constante, cria conceitos e se agarra a eles como pressupostos de verdades incondicionais. Ele possui "moral de senhor", ou seja, é responsável por si mesmo, sua moral é a moral em si, por isso ele é quem determina os valores. Sabe também que está em meio ao caos, que a noção de causalidade é mera representação, ilusão da mente humana e que tudo está envolvido em forças circulares, não forças que perpetuam, mas que criam e transformam.
Vale muito observar o alerta de Gilles Deleuze que em Nietzsche e a Filosofia afirma que a crítica em Nietzsche não é nunca uma reação, uma atitude de vingança, rancor ou ressentimento, mas sim uma ação, uma expressão ativa de um modo de existência, uma agressividade que não apresenta a negação, mas sim a diferença: "a diferença é o objeto de uma afirmação prática inseparável da essência e constitutiva da existência. O 'sim' de Nietzsche se opõe ao 'não' dialético; a leveza, a dança, ao peso dialético; a bela irresponsabilidade, às responsabilidades dialéticas". Assim sendo, Deleuze propõe que uma crítica de negação não é suficiente para um exercício completo da liberdade, visto que ela ainda se apresenta ligada à realidade criticada e negada. A verdadeira libertação surge com a criação e a exploração de novos caminhos, com uma força que não reage negando, mas sim afirmando sua diferença.
Às vezes o sentido de certas expressões diz muito pouco ou está muito aquém da realidade que se pretende comunicar. É o que ocorre na afirmação "oportunidade perdida", ou seja, é perdida a chance da realização de uma experiência. Entretanto, somente é possível perder algo que já se tem posse e a perda traz inevitavelmente a sensação de alívio ou falta, o que não ocorre quando se "perde uma oportunidade", visto que a experiência nunca se concretizou. É preferível a expressão "deixou de ganhar", pois ao abdicar de uma experiência decide-se nunca vivenciá-la e portanto nunca conhecer suas consequências. Portanto, trata-se de abdicar de crescer e abrir caminhos, de negar a existência em favor de uma segurança impossível.
REFERÊNCIAS |
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. BACON, F. Nova Atlântida. São Paulo: Abril Cultural, 1984. CAMPANELLA, T. A cidade do sol. São Paulo: Ícone, 2002. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Porto: Rés Editora, 2001. MORE, T. Utopia. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. NIETZSCHE, F. W. A gaia da Ciência. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. _________. Humano, demasiado humano. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. _________. O nascimento da tragédia no espírito da música. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ________. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. PLATÃO. A República. Bauru: Edipro, 1994. PRONOVOST, G. Introdução à Sociologia do lazer. São Paulo: Senac, 2011. ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo: Companhia das Letras, 2001/2002. |
Texto retirado da Revista Filosofia Ciência & Vida
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